Recebendo a paciente 23456
No silêncio mórbido do Abrigo, mais um dia começava. O holograma de recepção ativava seu modo automático de saudação, ajustando a voz para o protocolo de boas-vindas, enquanto a inteligência artificial se preparava para mais um acolhimento impessoal.
— Boa tarde, já fizemos a reserva, paciente 23456, conforme o protocolo — saudou o holograma, a imagem translúcida refletindo uma expressão que imitava compaixão. Diante dele, um homem e uma mulher, trazendo uma idosa que mal parecia consciente.
— Boa tarde, senhor. Sim, realmente ela será bem assistida e terá uma melhora significativa nas suas qualidades vitais. Antes passaremos pela triagem. Quer conhecer a Clínica enquanto as adaptações são feitas? — continuou o holograma, com uma frieza que contrastava com as palavras acolhedoras.
O casal, hesitante, assentiu. Os corredores brancos da clínica se estendiam friamente, ecoando os passos daqueles que, pela última vez, viam seus entes queridos em estado de consciência. O homem, com uma lágrima contida, parecia perdido na imensidão de seus pensamentos.
— É realmente estranho falar com uma inteligência artificial — murmurou ele, tentando se acostumar com a sensação de vazio absoluto que permeava o ambiente. A clínica, por mais avançada que fosse, não conseguia disfarçar o cheiro de desolação.
— Este local é projetado para garantir o máximo de conforto e cuidado — disse uma das assistentes, programada para aliviar as tensões. — Aqui, cada paciente recebe atenção personalizada e o tratamento adequado ao seu quadro.
Enquanto o casal observava, o androide doutor examinava a paciente 23456 com olhos clínicos, processando dados com precisão matemática.
— Os sinais vitais estão preservados — informou ele, a voz mecânica ecoando no espaço vazio. — Já os neurológicos precisarão de muito reparo. Ela é uma pessoa adorável. — A gentileza programada era quase um insulto à gravidade da situação.
O homem, imóvel, lutava para não ceder ao desespero. A esposa, tentando manter a postura firme, segurava a mão do marido com uma pressão que traía sua própria angústia.
— A tecnologia está bastante desenvolvida. Há relatos de regenerações e a reestruturação das condições vitais e neurológicas já devolveu muitos pacientes à sociedade. Não é o fim; é uma oportunidade para que sua mãe, como todos aqui, seja confortavelmente guardada esperando o futuro — continuou o androide.
"Guardada, não esquecida," pensou o homem, tentando encontrar consolo nas palavras vazias. A equipe, preparada para a operação, já começava a conectar a paciente à neuro-net.
— Nosso tempo está se esgotando — disse o doutor androide, sem inflexão na voz. — Conforme o protocolo que assinaste, precisa despedir-se logo e acompanhar a manutenção na 'neuro-net’. Preciso da sua impressão de íris com consentimento para seguir para o próximo paciente.
A mulher, mais prática, falou primeiro:
— Assine logo, amor. Precisamos buscar as crianças na escola.
O homem caminhou lentamente até a redoma onde sua mãe estava deitada. Os olhos dela, vazios, começaram a vibrar quando os cabos se conectaram à sua têmpora. Ele jamais esqueceria essa cena. O doutor androide, com modos impecáveis, disse:
— O processo é indolor, não se preocupe.
As lágrimas finalmente escorreram pelo rosto do homem, e a esposa, por mais cética que fosse, também cedeu ao choro. Os fluidos entraram na redoma, encaixando-se perfeitamente ao corpo da idosa. O consentimento foi dado, e o processo seguiu seu curso impiedoso.
Ao final, o doutor, agora mostrando uma frieza ainda mais evidente, anunciou:
— Paciente 23456, entregue com sucesso. Tenha um bom dia.
O casal, devastado, deixou o Abrigo, tentando agarrar-se à promessa de um futuro melhor para a mãe. A equipe, mecanicamente eficiente, já se preparava para o próximo acolhimento, na rotina implacável de cuidar daqueles que não podiam mais cuidar de si. No fundo, sabiam que a promessa de recuperação era uma ilusão para acalmar consciências, um paliativo tecnológico no sombrio universo do esquecimento.
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