Este conto foi originalmente publicado na Gazeta
de Notícias, em 27 de novembro de 1883, assinado por Machado de Assis.
Nunca
encontro esta senhora que me não lembre a profecia de uma lagartixa ao
poeta Heine, subindo os Apeninos: "Dia virá em que as pedras serão
plantas, as plantas, animais, os animais, homens e os homens, deuses". E
dá-me vontade de dizer-lhe: - A senhora, D. Camila, amou tanto a mocidade e a
beleza, que atrasou o seu relógio, a fim de ver se podia fixar esses dois
minutos de cristal. Não se desconsole, D. Camila. No dia da lagartixa, a
senhora será Hebe, deusa da juventude; a senhora nos dará a beber o néctar
da perenidade com as suas mãos eternamente moças.
A
primeira vez que a vi, tinha ela trinta e seis anos, posto só parecesse trinta
e dous, e não passasse da casa dos vinte e nove. Casa é um modo de dizer. Não
há castelo mais vasto do que a vivenda destes bons amigos, nem tratamento mais
obsequioso do que o que eles sabem dar às suas hóspedes. Cada vez que D. Camila
queria ir-se embora, eles pediam-lhe muito que ficasse, e ela ficava. Vinham
então novos folguedos, cavalhadas, música, dança, uma sucessão de cousas belas,
inventadas com o único fim de impedir que esta senhora seguisse o seu caminho.
-
Mamãe, mamãe - dizia-lhe a filha crescendo -, vamos embora, não podemos ficar
aqui toda a vida.
Dona
Camila olhava para ela mortificada, depois sorria, dava-lhe um beijo e
mandava-a brincar com as outras crianças. Que outras crianças? Ernestina estava
então entre quatorze e quinze anos, era muito espigada, muito quieta, com uns
modos naturais de senhora. Provavelmente não se divertiria com as meninas de
oito e nove anos; não importa, uma vez que deixasse a mãe tranquila, podia
alegrar-se ou enfadar-se. Mas, ai triste! Há um limite para tudo, mesmo para os
vinte e nove anos.
Dona
Camila resolveu, enfim, despedir-se desses dignos anfitriões, e fê-lo ralada de
saudades. Eles ainda instaram por uns cinco ou seis meses de quebra; a bela
dama respondeu-lhes que era impossível e, trepando no alazão do tempo, foi
alojar-se na casa dos trinta.
Ela
era, porém, daquela casta de mulheres que riem do sol e dos almanaques. Cor de
leite, fresca, inalterável, deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só
queria o de existir. Cabelo negro, olhos castanhos e cálidos. Tinha as espáduas
e o colo feitos de encomenda para os vestidos decotados, e assim também os
braços, que eu não digo que eram os da Vênus de Milo, para evitar uma
vulgaridade, mas provavelmente não eram outros. Dona Camila sabia disto; sabia
que era bonita, não só porque lho dizia o olhar sorrateiro das outras damas,
como por um certo instinto que a beleza possui, como o talento e o gênio. Resta
dizer que era casada, que o marido era ruivo, e que os dois amavam-se como
noivos; finalmente, que era honesta. Não o era, note-se bem, por temperamento,
mas por princípio, por amor ao marido, e creio que um pouco por orgulho.
Nenhum
defeito, pois, exceto o de retardar os anos; mas é isso um defeito?
Há, não me lembra em que página da Escritura, naturalmente nos Profetas,
uma comparação dos dias com as águas de um rio que não voltam mais. Dona Camila
queria fazer uma represa para seu uso. No tumulto desta marcha contínua entre o
nascimento e a morte, ela apegava-se à ilusão da estabilidade. Só se lhe podia
exigir que não fosse ridícula, e não o era. Dir-me-á o leitor que a beleza vive
de si mesma, e que a preocupação do calendário mostra que esta senhora vivia
principalmente com os olhos na opinião. É verdade; mas como quer que vivam as
mulheres do nosso tempo?
Dona
Camila entrou na casa dos trinta e não lhe custou passar adiante. Evidentemente
o terror era uma superstição. Duas ou três amigas íntimas, nutridas de
aritmética, continuavam a dizer que ela perdera a conta dos anos. Não advertiam
que a natureza era cúmplice no erro, e que, aos quarenta anos (verdadeiros), D.
Camila trazia um ar de trinta e poucos. Restava um recurso: espiar-lhe o
primeiro cabelo branco, um fiozinho de nada, mas branco. Em vão espiavam; o
demônio do cabelo parecia cada vez mais negro.
Nisto
enganavam-se. O fio branco estava ali; era a filha de D. Camila que entrava nos
dezenove anos, e, por mal de pecados, bonita. Dona Camila prolongou, quanto
pôde, os vestidos adolescentes da filha, conservou-a no colégio até tarde, fez
tudo para proclamá-la criança. A natureza, porém, que não é só imoral, mas
também ilógica, enquanto sofreava os anos de uma, afrouxava a rédea aos da
outra, e Ernestina, moça feita, entrou radiante no primeiro baile. Foi uma
revelação. Dona Camila adorava a filha; saboreou-lhe a glória a tragos
demorados. No fundo do copo achou a gota amarga e fez uma careta. Chegou a
pensar na abdicação; mas um grande pródigo de frases feitas disse-lhe que ela
parecia a irmã mais velha da filha, e o projeto desfez-se. Foi dessa noite em
diante que D. Camila entrou a dizer a todos que casara muito criança.
Um
dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. Dona Camila
pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se para a
defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. Interrogou a
filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte anos, e
ficou prostrada. Casá-la era o menos; mas, se os seres são como as águas da
Escritura, que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como atrás das
águas, outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens
inventaram este nome de netos. Dona Camila viu iminente o primeiro neto, e
determinou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como não formulara
a ideia do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocínio.
As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, donde não
as extraiu para não ser obrigada a encará-las.
- Mas
que é que você acha de mau no Ribeiro? - perguntou-lhe o marido, uma noite, à
janela.
Dona
Camila levantou os ombros.
-
Acho-lhe o nariz torto - disse.
- Mau!
Você está nervosa; falemos de outra cousa - respondeu o marido. E, depois de
olhar uns dous minutos para a rua, cantarolando na garganta, tornou ao Ribeiro,
que achava um genro aceitável, e se lhe pedisse Ernestina, entendia que deviam
ceder-lha. Era inteligente e educado. Era também o herdeiro provável de uma tia
de Cantagalo. E depois, tinha um coração de ouro. Contavam-se dele cousas
muito bonitas. Na academia, por exemplo... Dona Camila ouviu o resto, batendo
com a ponta do pé no chão e rufando com os dedos a sonata da impaciência; mas,
quando o marido lhe disse que o Ribeiro esperava um despacho do ministro
de Estrangeiros, um lugar para os Estados Unidos, não pôde ter-se e
cortou-lhe a palavra:
- O
quê? Separar-me de minha filha? Não, senhor.
Em que
dose entrara neste grito o amor materno e o sentimento pessoal é um problema
difícil de resolver, principalmente agora, longe dos acontecimentos e das
pessoas. Suponhamos que em partes iguais. A verdade é que o marido não soube
que inventar para defender o ministro de Estrangeiros, as necessidades
diplomáticas, a fatalidade do matrimônio, e, não achando que inventar, foi
dormir. Dois dias depois veio a nomeação. No terceiro dia, a moça declarou ao
namorado que não a pedisse ao pai, porque não queria separar-se da família. Era
o mesmo que dizer: prefiro a família ao senhor. É verdade que tinha a voz
trêmula e sumida, e um ar de profunda consternação; mas o Ribeiro viu tão
somente a rejeição, e embarcou. Assim acabou a primeira aventura.
Dona
Camila padeceu com o desgosto da filha; mas consolou-se depressa. Não faltam
noivos, refletiu ela. Para consolar a filha, levou-a a passear a toda parte.
Eram ambas bonitas, e Ernestina tinha a frescura dos anos; mas a beleza da mãe
era mais perfeita, e apesar dos anos superava a da filha. Não vamos ao ponto de
crer que o sentimento da superioridade é que animava D. Camila a prolongar e
repetir os passeios. Não: o amor materno, só por si, explica tudo. Mas
concedamos que animasse um pouco. Que mal há nisso? Que mal há em que um bravo
coronel defenda nobremente a pátria e as suas dragonas? Nem por isso acaba o
amor da pátria e o amor das mães.
Meses
depois despontou a orelha de um segundo namorado. Desta vez era um viúvo,
advogado, vinte e sete anos. Ernestina não sentiu por ele a mesma emoção que o
outro lhe dera; limitou-se a aceitá-lo. Dona Camila farejou depressa a nova
candidatura. Não podia alegar nada contra ele; tinha o nariz reto como a
consciência, e profunda aversão à vida diplomática. Mas haveria outros
defeitos, devia haver outros. Dona Camila buscou-os com alma; indagou de suas
relações, hábitos, passado. Conseguiu achar umas cousinhas miúdas, tão somente
a unha da imperfeição humana, alternativas de humor, ausência de graças
intelectuais, e, finalmente, um grande excesso de amor-próprio. Foi neste ponto
que a bela dama o apanhou. Começou a levantar vagarosamente a muralha do silêncio;
lançou primeiro a camada das pausas, mais ou menos longas, depois as frases
curtas, depois os monossílabos, as distrações, as absorções, os olhares
complacentes, os ouvidos resignados, os bocejos fingidos por trás da ventarola.
Ele não entendeu logo; mas, quando reparou que os enfados da mãe coincidiam com
as ausências da filha, achou que era ali demais e retirou-se. Se fosse homem de
luta, tinha saltado a muralha; mas era orgulhoso e fraco. Dona Camila deu
graças aos deuses.
Houve
um trimestre de respiro. Depois apareceram alguns namoricos de uma noite,
insetos efêmeros, que não deixaram história. Dona Camila compreendeu que eles
tinham de multiplicar-se, até vir algum decisivo que a obrigasse a ceder; mas
ao menos, dizia ela a si mesma, queria um genro que trouxesse à filha a mesma
felicidade que o marido lhe deu. E, uma vez, ou para robustecer este decreto da
vontade, ou por outro motivo, repetiu o conceito em voz alta, embora só ela
pudesse ouvi-lo. Tu, psicólogo subtil, podes imaginar que ela queria
convencer-se a si mesma; eu prefiro contar o que lhe aconteceu em 186...
Era de
manhã. Dona Camila estava ao espelho, a janela aberta, a chácara verde e sonora
de cigarras e passarinhos. Ela sentia em si a harmonia que a ligava às cousas
externas. Só a beleza intelectual é independente e superior. A beleza física é
irmã da paisagem. Dona Camila saboreava essa fraternidade íntima, secreta, um
sentimento de identidade, uma recordação da vida anterior no mesmo útero
divino. Nenhuma lembrança desagradável, nenhuma ocorrência vinha turvar essa
expansão misteriosa. Ao contrário, tudo parecia embebê-la de eternidade, e os
quarenta e dous anos em que ia não lhe pesavam mais do que outras tantas folhas
de rosa. Olhava para fora, olhava para o espelho. De repente, como se lhe
surdisse uma cobra, recuou aterrada. Tinha visto, sobre a fonte esquerda, um
cabelinho branco. Ainda cuidou que fosse do marido; mas reconheceu depressa que
não, que era dela mesma, um telegrama da velhice, que aí vinha a marchas
forçadas. O primeiro sentimento foi de prostração.
Dona
Camila sentiu faltar-lhe tudo, tudo, viu-se encanecida e acabada no fim de uma
semana.
-
Mamãe, mamãe - bradou Ernestina entrando na saleta -. Está aqui o camarote que
papai mandou.
Dona
Camila teve um sobressalto de pudor, e instintivamente voltou para a filha o
lado que não tinha o fio branco. Nunca a achou tão graciosa e lépida. Fitou-a
com saudade. Fitou-a também com inveja, e, para abafar este sentimento mau,
pegou no bilhete do camarote. Era para aquela mesma noite. Uma ideia expele
outra; D. Camila anteviu-se no meio das luzes e das gentes, e depressa levantou
o coração. Ficando só, tornou a olhar para o espelho, e corajosamente arrancou
o cabelinho branco, e deitou-o à chácara. Out, damned spot! Out! Mais
feliz do que a outra lady Macbeth, viu assim desaparecer a
nódoa no ar, porque no ânimo dela, a velhice era um remorso, e a fealdade, um
crime. Sai, maldita mancha! Sai!
Mas,
se os remorsos voltam, por que não hão de voltar os cabelos brancos? Um mês
depois, D. Camila descobriu outro, insinuado na bela e farta madeixa negra, e
amputou-o sem piedade. Cinco ou seis semanas depois, outro. Este terceiro
coincidiu com um terceiro candidato à mão da filha, e ambos acharam D. Camila
numa hora de prostração. A beleza, que lhe suprira a mocidade, parecia-lhe
prestes a ir também, como uma pomba sai em busca da outra. Os dias
precipitavam-se. Crianças que ela vira ao colo, ou de carrinho empuxado pelas
amas, dançavam agora nos bailes. Os que eram homens fumavam; as mulheres
cantavam ao piano. Algumas destas apresentavam-lhe os seus babies,
gorduchos, uma segunda geração que mamava, à espera de ir bailar também, cantar
ou fumar, apresentar outros babies a outras pessoas, e assim
por diante.
Dona
Camila, apenas tergiversou um pouco, acabou cedendo. Que remédio, senão aceitar
um genro? Mas, como um velho costume não se perde de um dia para outro, D.
Camila viu paralelamente, naquela festa do coração, um cenário e grande
cenário. Preparou-se galhardamente, e o efeito correspondeu ao esforço. Na
igreja, no meio de outras damas; na sala, sentada no sofá (o estofo que forrava
este móvel, assim como o papel da parede foram sempre escuros para fazer
sobressair a tez de D. Camila), vestida a capricho, sem o requinte da extrema
juventude, mas também sem a rigidez matronal, um meio-termo apenas, destinado a
pôr em relevo as suas graças outoniças, risonha, e feliz, enfim, a recente
sogra colheu os melhores sufrágios. Era certo que ainda lhe pendia dos ombros
um retalho de púrpura.
Púrpura
supõe dinastia. Dinastia exige netos. Restava que o Senhor abençoasse
a união, e ele abençoou-a, no ano seguinte. Dona Camila acostumara-se à ideia;
mas era tão penoso abdicar, que ela aguardava o neto com amor e repugnância.
Esse importuno embrião, curioso da vida e pretensioso, era necessário na terra?
Evidentemente, não; mas apareceu um dia, com as flores de setembro. Durante a
crise, D. Camila só teve de pensar na filha; depois da crise, pensou na filha e
no neto. Só dias depois é que pôde pensar em si mesma. Enfim, avó. Não havia
duvidar; era avó. Nem as feições que eram ainda concertadas, nem os cabelos,
que eram pretos (salvo meia dúzia de fios escondidos), podiam por si sós
denunciar a realidade; mas a realidade existia; ela era, enfim, avó.
Quis
recolher-se; e para ter o neto mais perto de si, chamou a filha para casa. Mas
a casa não era um mosteiro, e as ruas e os jornais com os seus mil rumores
acordavam nela os ecos de outro tempo. Dona Camila rasgou o ato de abdicação e
tornou ao tumulto.
Um
dia, encontrei-a ao lado de uma preta, que levava ao colo uma criança de
cinco a seis meses. Dona Camila segurava na mão o chapelinho de sol aberto para
cobrir a criança. Encontrei-a oito dias depois, com a mesma criança, a mesma
preta e o mesmo chapéu de sol. Vinte dias depois, e trinta dias mais tarde,
tornei a vê-la, entrando para o bond, com a preta e a criança. -
Você já deu de mamar? dizia ela à preta. Olhe o sol. Não vá cair. Não aperte
muito o menino. Acordou? Não mexa com ele. Cubra a carinha, etc., etc.
Era o
neto. Ela, porém, ia tão apertadinha, tão cuidadosa da criança, tão a miúdo,
tão sem outra senhora, que antes parecia mãe do que avó; e muita gente pensava
que era mãe. Que tal fosse a intenção de D. Camila, não o juro eu ("Não
jurarás", Mat. V, 34). Tão somente digo que nenhuma outra mãe
seria mais desvelada do que D. Camila com o neto; atribuírem-lhe um simples
filho era a cousa mais verossímil do mundo.
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