O Mundo Flutuante - Victor Milán
A montanha foi atingida.
Os galhos das árvores perderam as folhas, transformaram-se em bonsai contorcidos ou foram simplesmente arrancados. Os troncos ficaram parcialmente carbonizados; em volta das manchas negras, a casca apresentava um aspecto estranho, luzidio, prateado, como se as árvores estivessem sofrendo de alguma repulsiva doença de pele.
As árvores calcinadas dominavam uma cena de devastação. No vale mais abaixo, surgira uma grande cratera, cercada por montes de terra escura, o interior coberto por uma massa verde malhada de castanho, como jade barato. Nenhum passarinho sobrevoava a cratera; nenhum animalzinho explorava o seu perímetro.
Na encosta da montanha, uma árvore caída se moveu. Devagar, sacudindo a terra e pedaços de folhas mortas, ela se pôs de pé. As raízes acinzentadas pulsaram, penetraram na terra.
Um botão verde claro apareceu em um dos galhos.
Outros se juntaram a ele, brotando dos galhos em profusão espantosa. Aumentaram de tamanho, desenrolaram-se, transformaram-se em folhas que pareciam chamas verdes, frescas e saudáveis.
Por um momento, a árvore ficou sozinha na paisagem desolada. Então os outros troncos começaram a reviver, as outras raízes a cavar, os outros galhos a produzir fogo verde, de modo que em poucos momentos a encosta estava novamente coberta de vegetação.
Havia uma pessoa sentada em uma pedra, no meio de uma clareira de onde se podia ver o vale. Era uma mulher, embora usasse os fartos cabelos negros puxados para trás em um coque e os trajes fossem masculinos: um quimono por baixo de um hakama preto, O rosto era largo mas não perfeitamente redondo, os olhos longos e estreitos. Os dedos que alisavam o queixo triangular eram magros.
─ Muito interessante ─ disse uma voz, esforçando-se por aparentar segurança, sem muito sucesso.
A mulher se pôs de pé, sobressaltada. Era bem jovem. Devia ter vinte e poucos anos, se tanto. Uma mecha de cabelo se soltou e caiu-lhe no rosto.
─ Como chegou aqui? ─ perguntou, em tom incisivo.
O intruso saiu do meio das árvores, na orla da clareira.
Vestia um rico quimono, ornamentado com garças em voo.
O cabelo era raspado em torno do coque. Usava duas espadas no cinto: o dai-sho. Tinha o rosto mais estreito que o da moça embora um pouquinho mais rechonchudo. Fora isso, os dois eram muito parecidos. Sorriu.
─ Tenho meus métodos. Enquanto você contempla, eu hajo… irmã.
─ Está se intrometendo ─ disse a jovem, dando-lhe as costas.
─ É a minha intenção.
Fez um gesto em direção à cratera, agora quase escondida pela vegetação.
─ Por que não consertou isso, também, como fez com o Takara-yama?
─ Queria meditar a respeito do significado daquela cratera. E não tenho desejo de desafiara memória de nosso pai, HIDETADA- san.
─ A cratera significa que nosso pai não agiu com a firmeza necessária.
Honramos sua memória ouvindo suas últimas palavras e deixando de cometer o mesmo erro.
A moça apontou para as espadas.
─ Está usando os paramentos de um samurai em serviço.
─ Poderia dizer, minha irmã, que pertencemos à buke, à casta marcial. Poderia dizer também que estou a serviço, em um sentido amplo da palavra. Estou a serviço do povo do Japão.
Quero servir a toda a humanidade.
─ Forçando-a a obedecer aos seus desejos?
─ Escute-me, MUSASHI- san ─ disse o rapaz.
A arrogância inicial havia desaparecido, dando lugar a uma veemência quase infantil.
─ Nossos poderes são maiores que os de qualquer ser humano. Não é nossa responsabilidade usá-los para salvar o mundo da autodestruição, para restabelecer ordem?
A moça se sentou de novo na pedra e apoiou as mãos nos joelhos.─ Se usarmos nossos poderes dessa forma, HIDETADA- san, nos tornaremos iguais àqueles que combatemos. Destruiremos o que queremos preservar.
O rapaz franziu a testa.
─ Fraqueza! Foi esse sentimentalismo que forçou nosso pai a se matar.
─ Fala em honrar a memória do nosso pai, e, no entanto, é você mesmo que a desonra, recusando-se a reconhecer o valor de seu último presente.
─ Não devemos ser adversários.
─ Não tenho nenhuma vontade de antagonizá-lo.
─ Então deve juntar-se a mim.
─ Não posso.
O rapaz sacou a katana, levantou-a com as duas mãos.
─ Sinto muito, mas o giri é mais forte que o ninjo. Não deveria ter vindo aqui desarmada, minha irmã.
Uma pedra se destacou da montanha e se projetou em direção ao rosto do rapaz. Ele se esquivou. A espada foi arrancada da sua mão e caiu no solo, com um ruído metálico.
─ A pedra cega a tesoura ─ disse a moça. ─ Não devia ter se esquecido de que esta é a minha clareira, irmão.
O mato se enroscou nos pés do rapaz, cobrindo as tabi azuis, com desenhos circulares. Quando tentou sacar a waki-zashi, os galhos das árvores o impediram, envolveram-lhe os membros como cipós gigantescos, imobilizando-o. Ainda se debatia, gritando de raiva e frustração, quando uma ventania açoitou a montanha e uma chuva de pequenas pedras se abateu sobre ele.
A irmã começou a rir, os cabelos desprendendo-se do coque e balançando ao vento. Os galhos apertaram co mais força. No último instante, antes que eles o esmagassem, o jovem samurai deu um grito final de desespero e toda a substância o abandonou. dissolveu-se em pó, que se espalhou ao vento como um punhado de joias.
O vento cessou. O mato se recolheu. Os galhos voltaram à forma normal.
A gargalhada da jovem havia parado. No seu rosto havia agora uma tristeza infinita.
Às quinze e vinte e três, a Base de Lançamento da Ilha de Fukuoka saiu do ar. A transmissão de dados para o satélite chamado Mundo Flutuante não foi interrompida.
─ O ônibus espacial deve decolar de Fukuoka dentro de alguns minutos, MUSASHI- sama ─ disse o Dr. Nagaoka Hiroshi, ajoelhado no tatame que cobria o assoalho do seu shoin.
Era um aposento de seis tatames, mais ou menos do tamanho padrão para os alojamentos do toro. O que era incomum era o fato de o doutor ser o único ocupante. Na hierarquia rígida da sociedade japonesa, cada posição tinha os seus privilégios.
Além disso, seria difícil encontrar alguém disposto a compartilhar um alojamento com ele.
─ Como sabe, nossos agentes tiveram algumas dificuldades na clínica; houve arruaças em Shinjuku. De agora em diante, porém, tudo deverá correr normalmente.
─ Preferia que não me chamasse de sama, Nagaoka-san ─ disse a voz que vinha da unidade e ao quadrado.
De um lado do aposento, painéis fusuma de papel de arroz pintado escondiam a parede. Do outro, uma armação metálica com um metro de altura e trinta centímetros de profundidade tinha sido instalada para formar a alcova tokonoma, na qual estava pendurado o tesouro pessoal de Nagaoka, uma antiga xilogravura.
─ Como posso ser superior a você? Nem mesmo estou viva! Era a voz de uma mulher de vinte e poucos anos. Usava um vocabulário masculino, como estava na moda entre as mulheres japonesas modernas… ou pelo menos tinha estado antes da Quarta Guerra Mundial, há duas semanas; a moda estava mudando. Aquela voz não parecia combinar com coisas sérias. Nagaoka brincou com os pesados óculos de aro de chifre, como costumava fazer quando se sentia inseguro.
─ Você é superior a mim sob todos os aspectos ─ disse, escolhendo as palavras com tanto cuidado que a gagueira habitual se tornou quase imperceptível.
Curioso ─ pensou. ─ Nossa língua, toda a nossa cultura, se baseia em evitar exatamente a insegurança. Entretanto, a evolução que deu origem às nossas tradições jamais poderia levar em conta esse tipo de situação.
Era um antropólogo de profissão, dado a colorir com introspecção os frequentes acessos de desanimo.
A voz suspirou.
Interessante ─ pensou Nagaoka ─ para uma criatura que não precisa respirar. Será que ela imitou um suspiro para me deixar mais à vontade, para parecer mais humana? Foi um ato intencional, ou uma sub rotina de sua programação?
MUSASHI era para ele motivo constante de admiração…
ainda mais que havia ajudado a torná-la realidade.
─ Por favor… ─ disse o alto falante na parede. ─ Não quero ser tratada dessa forma!
Delicioso paradoxo! O conflito de obrigações… Nagaoka estava começando a refletir a respeito quando a porta chamou-lhe discretamente a atenção com três notas simuladas de um shamisen.
─ Abra ─ disse Nagaoka
Ocorreu-lhe, não pela primeira vez, que a sub-rotina de quinta geração que operava a porta, e à qual se dirigira com tanta naturalidade era, como todos os programas que monitoravam o satélite e o mantinham em funcionamento e sua órbita inclinada, uma parte de MUSASHI. Entretanto, não eram a própria MUSASHI. Criados sem mente, nada mais que isso.
A porta se abriu, deslizando para dentro do encaixe. Uma técnica entrou e fez uma reverência mecânica.
─ Katsuda mandou dizer que recebemos notícias de Fukuoka. O lançamento foi adiado. Um problema técnico qualquer. Não vai levar muito tempo para consertar.
O tom era frio e Nagaoka notou que seu macacão cor de prata estava todo amarrotado, sujo no colarinho e manchado no peito. A força de Coriolis levou até ele uma lufada de ar; havia muito tempo que a técnica não tomava banho. Nagaoka fez que sim com a cabeça.
─ Obrigado, Tomita. Diga a Katsuda-san que eu compreendo. A mulher balançou a cabeça com cabelos cortados rente e se retirou; a porta se fechou.
─ O técnico chefe mandou dizer que houve um atraso no lançamento, MUSASHI- sama ─ disse Nagaoka, voltando-se para o microfone na parede, como se MUSASHI não tivesse ouvido a conversa.
Naturalmente, MUSASHI já sabia o que o técnico chefe do Ukiyo havia mandado sua assistente contar a Nagaoka; ela monitorava todas as comunicações entre o satélite e a Terra, com exceção das conversas particulares. Entretanto, participava dos rituais dos ocupantes humanos da estação.
─ Assumo plena responsabilidade.
─ Oh, Nagaoka-kun, como pode assumir responsabilidade por algo que foge inteiramente ao seu controle? ─ perguntou.
Parecia aflita, usando diminutivo afetuoso para tentar agradá-lo, como se ela fosse uma criança… ou uma professora falando com seu aluno favorito.
Nagaoka fez uma reverência profunda. MUSASHI tinha violado as regras, mas não havia regras que cobrissem uma situação daquelas.
─ Mesmo assim, sinto-me envergonhado ─ disse, sentindo um arrepio.
Um ruído de estática emergiu do alto falante, o modo que MUSASHI costuma usar para expressar sua irritação. Aquela reação deixava Nagaoka fascinado: era análoga a um gesto humano, mas havia surgido espontaneamente, e não como uma imitação direta dos criadores de MUSASHI, como no caso dos suspiros.
─ Agora vou deixá-lo, Nagaoka- san ─ disse MUSASHI, retirando-se.
Nagaoka aprumou o corpo e olhou para a tela vazia.
É curioso ─ pensou. ─ Tenho sempre a impressão palpável de que uma pessoa deixou o aposento. Naturalmente, ela ainda estava lá, como estava em toda a estação ao mesmo tempo. Entretanto, concentrara sua atenção em outro lugar e não se daria conta de sua presença a não ser que Nagaoka a chamasse… caso em que uma sub-rotina do shosei a alertaria, da mesma forma que faria com o Dr. Shimada ou Katsuda, se Nagaoka precisasse falar com eles.
─ Shosei ─ disse, dirigindo-se ao secretário pessoal Gen-5 que residia em todos os computadores do Ukiyo. ─ Dê-me uma vista da terra.
O que parecia um fusuma de papel de arroz imaculada-mente branco se transformou na imagem de um círculo azul e branco cercado pela escuridão. Nagaoka estreitou os olhos por trás das lentes grossas dos óculos, procurando instintivamente a Terra Natal no meio das nuvens, até se dar conta de que a órbita inclinada do Ukiyo havia levado o satélite para o hemisfério sul.
É a estação das tormentas ─ disse para si mesmo, percebendo vagamente que se tratava de uma citação, irritado por não ser capaz de se lembrar da fonte. Frequentemente ficava irritado consigo mesmo e desejava ser outra pessoa, alguém mais eficiente.
Naturalmente, a verdadeira estação das tormentas já havia ficado para trás. Nagaoka passara a Quarta Guerra Mundial olhando com uma fascinação mórbida para as telas de vídeo do satélite enquanto, lá embaixo, os pontinhos termonucleares surgiam, aumentavam de tamanho e se dissipavam. Entretanto, não tinha ficado tão abalado quanto seria de se esperar. Sentia-se um pouco divorciado da Terra. As convulsões da Terceira Guerra Mundial, os anos de trabalho compulsivo no projeto TOKUGAWA, o júbilo com o sucesso do projeto, o exílio para o Mundo Flutuante, tudo havia contribuído para esgotar suas emoções.
Para ele, o Ukiyo era tudo que havia de real no momento. Sentia-se envergonhado por encarar com tanta frieza a morte de mais de metade das criaturas que a Terceira Guerra Mundial havia poupado. Por outro lado, tinha a impressão de que todas as pessoas que conhecera já estavam mortas antes mesmo da Quarta Guerra Mundial.
Voltou-se para o tokonoma. A gravura deixou-o mais calmo, o que era exatamente a função dos tesouros das alcovas.
Uma lembrança de um momento, que transmitia uma sensação de nostalgia por uma cena que jamais havia testemunhado: Sob as Ondas na Costa de Kanagawa, de Hokusai, talvez a mais famosa obra de arte japonesa. Era o original, presenteado pelo velho Yoshimitsu Akaji ao grupo liderado pela Dra. Elizabeth O’Neill, um gesto cuja generosidade tinha sido quase tão sem precedentes quanto o sucesso que comemorava. Em um dos raros gestos de rebeldia de Nagaoka desde que escolhera a carreira contra os desejos do pai, que o enviara a Todai para preparar-se para ser um Novo Mandarim, contrabandeara a gravura para o satélite quando Shigeo, o filho de Akaji, o banira para o Mundo Flutuante.
Apanhou um pincel e um tinteiro debaixo da onda fractal mais famosa de Hokusai e se preparou para escrever.
A Rede era um recife.
Uma imensidão caótica, amorfa mas não desordenada.
Uma rede policromática de informações, uma infinidade de células cujas profundezas escondiam maravilhas. Filamentos de dados, ancorados na estrutura, agitavam suas copas fractais em dimensões múltiplas. Os habitantes do recife eram vistosos, estranhos e numerosos.
Como uma moréia feliz, MUSASHI deslizou entre as fortificações de Montastrea, roçou em uma colônia de gorgônias, saboreou a beleza do grande recife com sentidos que nenhum ser humano poderia utilizar, pelo menos não sem uma interface direta com a estrutura de dados que constituía a própria essência de MUSASHI. MUSASHI era capaz de perceber seletivamente, como uma pessoa que fecha os olhos para se concentrar em um som ou aroma, ou como um feixe coerente de raios-X que é focalizado em camadas sucessivamente mais profundas de uma estrutura cristalina, observando-a e capturando-a, uma camada holográfica de cada vez.
Enquanto estava ocupada, o trabalho cotidiano de manter o Mundo Flutuante vivo e funcional era executado por rotinas de Quinta Geração cuja característica mais sofisticada era a capacidade de reconhecer quando se encontravam diante de uma situação acima da sua competência, caso em que MUSASHI seria imediatamente alertada.
MUSASHI havia iniciado o passeio aquático como sempre fazia, assimilando toda a matriz de informações do recife de dados de uma vez, como um gestalt, a partir dos milhões de computadores ligados à Rede pelos pequenos transmissores que se comunicavam com os satélites em órbita estacionária. Se quisesse, poderia concentrar a atenção em qualquer elemento da estrutura, por menor que fosse, desde a escrivaninha de um agente da polícia secreta em Buenos Aires até uma plataforma de comunicações suspensa eternamente acima do Oceano Índico, alheia à guerra que ainda grassava lá embaixo.
Nos primeiros momentos, contentou-se um absorver o todo, em apalpá-lo, como um mergulhador humano passando a mão no áspero coral do recife, mas sem medo de ferir-se. Não havia nada no recife que pudesse temer. Era o seu ambiente natural.
Mergulhou mais fundo, submergindo nas correntes de informação, mornas e sensuais como as águas do Caribe. Por algum tempo, limitou-se a experimentar e sentir.
Depois que passou aquela primeira onda de prazer puramente táctil, MUSASHI se deu conta de que alguma coisa não estava certa. As correntes eram estranhamente imperfeitas, abismos se abriam na estrutura irregular do recife; seus sentidos eram limitados por regiões de águas turvas que lembravam tempestades de areia no fundo do oceano.
Não sentiu surpresa, apenas desapontamento.
Os planos de dados não haviam escapado à Quarta Guerra Mundial. A destruição parcial da matriz tinha criado lacunas no grande recife. Entretanto, a analogia com um ecossistema de verdade ia mais longe: o ambiente de dados podia curar a si mesmo, era capaz de absorver e consertar os danos. Pelo menos até certo ponto.
O pai de MUSASHI tinha nascido no intervalo entre as guerras (pensava assim de sua construção, como um nascimen-to) mas quando a tensão no Pacífico começara a anunciar que uma nova guerra estava próxima, estudara os efeitos da Terceira Guerra Mundial sobre o plano de dados. Chegara à conclusão de que estava mais forte que nunca, depois de um período de desar-ranjo. MUSASHI desviou os sentidos da devastação. Certamente o recife se curaria sozinho.
─ São era mesmo? ─ Sr. diretor...
Nagaoka levantou os olhos, pousando, pensativo, os pau-zinhos ao lado da tigela, para que a força de Coriolis causada pela rápida rotação do satélite não os fizesse rolar para longe.
Além de refeitório, o kotatsu de sete metros por cinco constituía um refúgio para o isolamento imposto pelo vácuo lá fora... para a divisão inevitável da estação em compartimentos estanques, tão alheia ao modo de vida japonês. Os japoneses a bordo iam para lá sempre que possível, movidos por uma atração mútua. Um grupo de técnicos e cientistas ocupava o aposento; conversando ou vendo um noticiário na tela de TV de dois metros a respeito da guerra civil no que a Quarta Guerra havia poupado da Indonésia, uma das nações mais envolvidas nos combates.
Ninguém seria suficientemente rude para encará-lo abertamente (o moral ainda não havia caído tanto) mas Nagaoka sentiu os olhares de soslaio como se fossem raios de sol no meio de uma floresta.
─ Que posso fazer por vocês? ─ perguntou Nagaoka, no tom mais neutro que conseguiu.
Podia sentir o pulso acelerar como se tivesse um oscilos-cópio no peito. Tinha se ajoelhado para a refeição diante do tokonoma do aposento e o tesouro particular que continha, assumindo a posição dominante porque sabia que era seu dever; aquilo sempre lhe dava um frio no estômago. Os olhares de soslaio o incomodavam; queimavam-lhe a pele como fios incandescentes.
─ É o cientista gaijin ─ disse Katsuda.
Tinha um rosto quadrado, com sobrancelhas espessas; o cabelo dava a impressão de ter sido pintado com pinceladas curtas, irregulares. O corpo era forte, um pouco volumoso na região do hara (o abdome), na tradição japonesa de força. Seu ar de competência intimidava a Nagaoka tanto quanto sua truculência. O assistente, Tomoyama, estava à esquerda, um pouco atrás, e olhou para Nagaoka sem dissimular o desprezo que sentia. – Ele insiste em que devemos evacuar a Câmara.
– Qual é o problema?
Como algumas experiências exigiam o vácuo mas não um ambiente de gravidade zero, era possível remover o ar de qualquer compartimento do satélite, depois que os computadores determinassem que não havia mais nenhum humano desprotegido no interior. Embora todos os membros da guarnição do Ukiyo, incluindo Nagaoka, tivessem sido escolhidos por serem capazes de suportar a velocidade de rotação necessária para manter uma gravidade a bordo igual à terrestre, a transição do movimento relativamente rápido de três rpm da área dos alojamentos para o movimento nulo do laboratório de gravidade zero não deixava de ser uma sobrecarga para o organismo, a ser evitada sempre que possível.
A atenção de Nagaoka se desviou para o vídeo, que agora estava mostrando a mudança de uma aldeia da Ucrânia, executada por uma organização intitulada Novo Exército Vermelho, que ocupava a periferia da República Federativa Socialista Cristã da Rússia. Um porta-voz armado até os dentes estava explicando que a vila passava por um processo de “reforma pacífica”. O correspondente não parecia disposto a contradizê-lo, enquanto os tristes camponeses marchavam na chuva fina, sob a mira dos reformadores.
─ O mundo está desmoronando abaixo de nós! ─ exclamou Tomoyama, apontando com a faca na direção da tela. ─ Este aqui agora é o nosso mundo, o nosso uchi. Por quanto tempo ainda vamos nos humilhar, servindo de escravos para os tanin?
Nagaoka sentiu as pálpebras se fecharem como se fossem obturadores automáticos. O termo que Tomoyama havia usado significava estranhos, forasteiros, e não tinha uma conotação agradável. Nagaoka não precisava ser antropólogo para compreender seu haragei, expressão que tanto queria dizer significados múltiplos quanto linguagem corporal. Se Tomoyama estivesse se referindo apenas ao norte-americano Thoma, teria usado a palavra “estrangeiro”: gaijin.
Ainda sou um estranho aqui, pensou. Depois de meses no meio deles. Talvez fosse a falta de conhecimentos técnicos, aliada ao fato de que, pelos padrões de Katsuda e dos companheiros, ainda era um recém-chegado.
Umedeceu o lábio inferior e ajeitou os óculos no nariz.
─ Perdeu todo o aisha seishin, Tomoyama-san? Vamos fazer o que a lealdade exige... não podemos pensar apenas em nós mesmos!
A pele do rosto estreito de Tomoyama se retesou como se estivesse sendo enrolada em um carretel na parte de trás da cabeça. Nagaoka odiou-se por recorrer a um expediente tão óbvio, apelando para o “espírito comunitário”. A verdade, porém, era que se tratava de um argumento ao qual seria difícil para um japonês resistir.
Difícil, mas não impossível. Os olhos de Tomoyama brilhavam como bolas de gude. Da próxima vez, não saia manipulado com tanta facilidade.
─ Temos que honrar nossos compromissos, ou não seremos melhores que os gaijin, sempre preocupados com interesses mesquinhos ─ concordou Katsuda, de cara feia. ─ Mas não vai ser fácil. Estamos usando a Câmara 30 como depósito.
─ Tenho certeza de que encontrará uma solução, Katsuda-san. Katsuda fez uma reverência e deixou o aposento, com Tomoyama nos calcanhares.
Pouco depois, Nagaoka descobriu, sem muita surpresa, que estava sozinho. Estou isolado, pensou.
Na verdade, estavam todos isolados. A rotação da estação evitava a deterioração física causada pela falta de gravidade; a atrofia dos músculos não impediria a volta deles à Terra. Entretanto, muitos haviam perdido os lares e a família na Guerra... alguns sem saber disso, como o pobre Omamura, que o Dr. Shimada mantinha sob o efeito de tranquilizantes. Os outros imagi-navam por quanto tempo ainda teriam alguma razão para voltar.
Havia algo mais, alguma coisa que ele próprio sentia na pele: um crescente sentimento de alienação em relação ao turbulento planeta lá embaixo.
Estamos próximos de uma crise, pensou. A sensação estava presente desde a sua chegada; a Quarta Guerra Mundial acelerara o processo, embora o Ukiyo não tivesse sido atingido pelas tempestades termonucleares. Agora estava chegando ao seu desfecho.
Que devo fazer?
Como era costume, MUSASHI fez uma última parada antes de subir à superfície do Mundo Flutuante. Focalizando a consciência em uma das câmaras de vídeo montadas no hectare de painéis solares que flutuava ao lado do satélite, admirou a lua artificial que era o seu lar.
Dada a tendência dos japoneses de colocarem a estética acima de tudo, a estação espacial constituía uma visão surpreendente: um toro irregular girando em torno da carcaça cilíndrica do “booster” de um ônibus espacial norte-americano, o que dava ao conjunto a aparência de um cogumelo tosco de cem metros de diâmetro. O satélite havia sido construído conjuntamente pela YTC e uma firma de bioengenharia chamada Amagumo e iniciara sua existência como um simples par de halteres, dois módulos cilíndricos de sete metros de comprimento ligados por um corredor estreito e girando três vezes por minuto.
Com o passar dos anos, outros módulos tinham sido acrescentados, de acordo com as necessidades de trabalho e a disponibilidade de verbas, até fechar completamente o círculo.
Como o transporte de cargas para o espaço não era nada barato, a ampliação do satélite fora feita de forma bastante pragmática, utilizando os módulos pré-fabricados disponíveis na época dos lançamentos e os lixos espaciais em órbita que pudessem ser reaproveitados. Isso explicava a forma irregular da estação.
Do seu ponto de vista no meio dos painéis solares, MUSASHI admirou a forma como a luz do sol dançava na superfície sempre em movimento do gigantesco anel. Para um espírito japonês, menos obcecado com a regularidade geométrica que os ocidentais, a aparência improvisada do Ukiyo era mais agradável do que a regularidade de um toro projetado para ser um todo desde o início.
Com algo parecido com um suspiro, MUSASHI preparou-se para voltar ao Mundo Flutuante.
* * *
Descendo para o Centro do Mundo, Nagaoka Hiroshi experimentou a sensação estranha de ficar mais leve a cada degrau.
Havia um elevador no outro corredor pressurizado e esteiras rolantes para objetos maiores nos dois tirantes não pressurizados perpendiculares aos corredores, mas a YTC aconselhava os tripulantes a usarem a escada sempre que possível, para mante-rem a forma física. Nagaoka era suficientemente ocidentalizado para se sentir ligeiramente ridículo por obedecer a uma regra tão 28 prosaica poucas semanas depois de o mundo ir pelos ares pela segunda vez em menos de uma década. Mesmo assim, continuou a descer a escada de plástico branco; não era fácil exercitar-se no espaço, mesmo com gravidade artificial.
Além do mais ─ pensou ─ talvez a rotina seja tudo que nos mantém funcionando. Pelo menos tinham recebido uma boa notícia. O ônibus espacial finalmente havia decolado de Fukuoka.
O centro do Mundo Flutuante era um disco de dez metros de diâmetro e cinco de espessura, atravessado pelo eixo de cinco metros de espessura ao qual estava preso o laboratório de gravidade nula. As solas de plástico magnético dos sapatos de Nagaoka o mantiveram no lugar na pseudogravidade muito reduzida quando abriu uma porta de Lexan e “subiu” para a Câmara de Transferência. Acionou os controles e sentiu uma leve pressão nas costas quando a câmara, suspensa como o próprio eixo em rolamentos supercondutores sem atrito, acoplou-se magneticamente ao laboratório e começou a perder velocidade.
Uma lâmpada verde acendeu no painel. O diretor puxou uma alavanca e outra porta de Lexan se abriu. Sem se dar ao trabalho de colocar a corda de segurança (como a maioria dos japoneses, sabia quando não era necessário obedecer ao regulamento ao pé da letra), deu um leve impulso com as mãos e deslizou para o coração do Mundo Flutuante.
O laboratório de gravidade zero era o “booster” de um velho ônibus espacial norte-americano, a carcaça de um foguete descartável que havia sido colocada propositadamente em órbita, em vez de ser ejetada para queimar na atmosfera; os americanos tinham intenção de usá-la como um dos módulos de uma estação espacial do projeto Guerra nas Estrelas que nunca havia saído do papel. Felizmente, ficava em uma órbita próxima da do Ukiyo, e pouco depois da Terceira Guerra Mundial a YTC e a Amagumo a haviam recolhido no espaço. Os pan-europeus entraram com uma queixa na Corte Mundial em nome do governo norte-americano no exílio em Paris, mas o tribunal de Haia considerou que os zaibatsu japoneses haviam exercido o direito legítimo de salvagem. A Pan-Europa reagiu dissolvendo o tribunal, mas não pôde fazer mais nada.
O governo norte-americano no exílio continuou a resmungar durante algum tempo, mas caiu no esquecimento antes mesmo de a Eurofrente capturar Paris pela primeira vez. A YTC e seus sócios temporários ignoraram os protestos dos gaijin e logo incorporaram o “booster” ao satélite.
Um agradável senso de desorientação atingiu Nagaoka junto com uma onda de cheiro de mato. Parecia haver entrado em uma selva e não em um laboratório a trezentos quilômetros da superfície da Terra. Copas de árvores e folhas gigantescas se estendiam em todas as direções, fibrilando levemente em uma brisa úmida.
O diretor saboreou a ilusão por alguns instantes. Depois, bateu palmas educadamente, para anunciar que havia chegado, estendeu a mão para um corrimão que poderia passar como cipó e seguiu caminho. Passou por equipamentos de laboratório misturados com as cubas onde as raízes das plantas extraíam o sustento de uma massa de polímero poroso.
O Laboratório Verde parecia deserto. Usou outro corrimão para se firmar na parede oposta e apertou um botão. Uma escotilha se abriu e Nagaoka passou para o Laboratório Azul.
O Laboratório Azul tinha uma aparência mais convencional: os instrumentos estavam distribuídos regularmente no aposento de forma cilíndrica, que era cortado por corrimãos e pintado de azul-claro, no tipo de ergonomia ostensiva que sempre o irritava. Mais além, depois dos armários com os trajes pressurizados e de uma comporta de despressurização, ficava o Laboratório Branco, onde eram realizadas as experiências que, além de gravidade nula, também necessitavam de vácuo. Inja-san estava lá, para variar, flutuando ao lado de um aparelho reluzente que dobrava proteínas como se fossem origami. Usava uma veste azul pastel por cima da tanga, por consi-deração ao regulamento, mas estava descalço. Mantinha-se no lugar segurando no corrimão com os dedos dos pés. Olhou para Nagaoka por cima do ombro.
─ Nagaoka- san! Prazer em vê-lo. Pensei que fosse aquele cretino do Katsuda.
Na posição em que se encontravam, Inja-san estava “acima” de Nagaoka, que tinha que levantar a cabeça para vê-lo.
Nagaoka se aproximou, usando o corrimão, até ficar no mesmo nível que o outro.
─ Vim ver como estão indo as experiências. O velho deu de ombros.
─ Tudo isto é uma farsa; desde a Guerra que não fazemos nenhuma pesquisa científica de verdade. Estamos apenas deixando o tempo passar até que aqueles imbecis lá embaixo nos digam o que querem. Se é que pretendem fazê-lo. Com todos os apertos que estão passando, talvez acabem por se esquecer de nós. Balançou a cabeça, com ar pensativo.
─ O que, afinal de contas, talvez fosse melhor. O ônibus espacial chegou?
Ao fazer a pergunta, voltou-se para encarar Nagaoka. O antropólogo sentiu o estômago embrulhado. Inja- san jamais saía do laboratório e nem mesmo usava um eletro estimulador para evitar a perda de cálcio. Tinha o rosto inchado pela gravidade zero: fugu.
Os fluidos haviam se redistribuído pelo seu corpo, abandonando as pernas e o abdome, expandindo-lhe o peito, dilatando-lhe as bochechas, fazendo os olhos afundarem nas órbitas, inchando as pálpebras. Costumavam dizer que o espaço transformava os gaijin em orientais; o rosto de Inja- san se tornara uma máscara, unia paródia do Perigo Amarelo da época da Segunda Guerra Mundial. Mais ainda: as bochechas redondas e os lábios salientes o faziam parecer um peixe-bola.
Apesar de sua aversão japonesa pelas deformidades físicas, Nagaoka se forçou a olhar para o velho técnico sem pesta-nejar. Inja- san era a coisa mais próxima que tinha de um amigo naquela estação.
─ O ônibus espacial está atrasado, Inja-san.
─ Ah! Ouvi dizer que haverá um grande cientista a bordo, talvez com uma missão para nós.
Sorriu inesperadamente. Tinha dentes estragados, mas não se incomodava de mostrá-los.
─ E uísque, uísque dos bons, Old Rebellion da EasyCo, e não essa droga do Suntory ─ prosseguiu. ─ Aproveite enquanto puder, é o que eu digo. Uma boa parte da EasyCo não existe mais. Será que eles ainda fabricam uísque?
─ Todas as sociedades humanas consomem bebidas alcoólicas ─ disse Nagaoka, passando para o tom pedante e arrependendo-se imediatamente.
A verdade é que jamais aprendera a conversar com naturalidade.
─ Mesmo assim, pode ser que não queiram dividir conosco, não é? ─ disse Inja-san, com uma risada, dando um tapinha no braço do diretor. ─
Então veio aqui ver o que estou fazendo?
Nada que possa compreender.
Nagaoka baixou os olhos.
─ Tem razão, Inja-san. Não entendo nada do que fazem aqui. A autopiedade tomou conta dele; sentiu vontade de chorar. ─ Não admira que ninguém goste de mim. Não conheço nada de prático.
─ Estava só brincando. Perdoe-me; estou ficando velho, mesmo que vá viver para sempre.
Voltou-se para o aparelho.
– É por isso que gosto do senhor. Katsuda pensa que sabe tudo e não sabe quase nada. O senhor acha que não sabe nada, mas sabe muita coisa.
─ Esforcei-me para me inteirar dos aspectos técnicos...
─ Ora, deixe isso para as reuniões da diretoria, se é que vão continuar agora que o último dos Yoshimitsu foi embora.
O senhor jamais será um técnico. E daí? Deixe isso conosco. O senhor é que manda.
─ Então que devo fazer?
─ Fazer? Nada, ou quase nada. Faça dragões de papel, brinque com árvores anãs. Cultive a serenidade. Não viu nenhum filme yakuza quando era criança? Limite-se a ser uma figura benigna de pai, oyabun, alguém em quem os outros possam se inspirar. Fora disso, o senhor não os incomoda e eles não o incomodam. Pode ser mais simples?
─ Pensei que o oyabun sempre morresse nos filmes ─ queixou-se Nagaoka.
─ Ora, não posso pensar em tudo. Além disso, todo mundo vai morrer, exceto o velho Inja-san. O jeito é viver o melhor possível até chegar a hora.
Voltou-se de novo para o dobrador de proteínas, que tinha um painel cheio de lâmpadas verdes e parecia a Nagaoka emitir um zumbido subliminar que deixava seus cabelos em pé.
─ Eu sei que o senhor sabe que para criar nanomáquinas realmente úteis vamos ter que montar proteínas a partir do zero de acordo com as nossas especificações, porque lhe disse isso pessoalmente, e também lhe disse que não adianta apenas enfileirar os aminoácidos como se fossem as contas de um colar, porque o segredo está no modo como as proteínas se dobram. A gravidade da Terra torna difícil dobrar as proteínas artificiais do jeito que queremos. É por isso que a biotecnologia não progrediu tão rapidamente quanto...
─ Você me disse isso, também ─ interrompeu Nagaoka, sem levantar a voz.
─ Ah, sim... acho que disse.
Flutuando ali em repouso quase fetal, começou a movimentar os dedos ao acaso no ar, sem saber como prosseguir. Foi salvo da situação constrangedora pelo som discreto da campai-nha da unidade c ao quadrado.
─ Fale ─ disse Nagaoka, transferindo sua irritação para o interlocutor.
O rosto de uma técnica apareceu em uma tela próxima.
─ Dr. Nagaoka, uma nave transorbital está chegando.
Achei que gostaria da saber.
─ Oh, havia me esquecido!
Agradeceu à mulher e a tela se apagou.
─ Inja-san, agora tenho que ir.
─ É melhor. Vocês rastejadores têm medo da falta de gravidade; mal podem esperar até que a falsa gravidade ponha de novo os órgãos no seu tabi. Pode ir.
Fez uma pirueta, esbarrando com as nádegas na tela apagada. ─ E diga ao seu precioso Katsuda- san para vir aqui embaixo quando estiver com vontade de fazer um pouco de pesquisa...
─ Hiroshi, seu diabinho, está mais parecido que nunca com um peixe-gato!
Antes que tivesse tempo para ficar ofendido, Joanna Fenestri passou a mão no lado direito do bigode de Nagaoka e beijou-o rapidamente no rosto. Teve que se esticar para fazê-lo; não era muito alta, pouco mais que metro e meio, uma mulher magra, vestida com um macacão cáqui, contrastando com botas e cinto vermelho berrante.
O diretor sorriu nervosamente, sem saber ao certo como reagir. ─ É bom ver você de novo, Joanna – disse, afinal.
Era agradável falar inglês novamente usando mais que termos técnicos.
─ Um momento, querido ─ disse Joanna, voltando-se para um painel de controle próximo.
Pouco depois, o vídeo estava mostrando a imagem do seu veículo, uma nave arredondada de asas delta não muito diferente dos ônibus espaciais, estacionada a cerca de meio quilômetro do Ukiyo, ao lado de dois imensos balões. Eram sacos de combustível; não havia necessidade de que fossem rígidos, e o uso de uma pele de polímero inflável representava uma economia tanto de massa como de volume, dois bens preciosos quando se tratava de viagens espaciais.
Em virtude da escassez de materiais em órbita, os ônibus espaciais sempre partiam da Terra com os compartimentos de carga repletos; mesmo que tivessem que ser estocados, os suprimentos acabavam por tornar-se úteis, mais cedo ou mais tarde.
Além dos próprios foguetes de lançamento, que constituíam um excelente material de construção, o combustível havia sido, desde o começo, um dos suprimentos que eram enviados regularmente para os satélites. No momento, o veículo da italiana estava sendo reabastecido pelos técnicos do Mundo Flutuante; os voos transorbitais consumiam muito combustível.
O transporte entre satélites era mais complicado do que poderia parecer a um leigo. Eles giravam em uma variedade fantástica de altitudes e inclinações, desde as plataformas de comunicações, estacionadas em uma órbita síncrona, 35.720 quilômetros acima do equador, até as estações tripuladas, a apenas algumas centenas de quilômetros da superfície, cujas órbitas podiam ter qualquer inclinação. Às vezes era preciso mais energia para ir de uma órbita a outra do que para ir da Terra a qualquer das duas órbitas.
Mesmo assim, havia um tráfego razoável entre os satélites.
Em caso de emergência, era mais rápido montar uma missão de salvamento a partir do espaço do que a partir da Terra. Mesmo em circunstâncias menos dramáticas, podia ser mais econômico transferir objetos fabricados no espaço de um satélite para outro do que enviá-los primeiro para a Terra.
Daí a necessidade de veículos transorbitais, os saltadores.
Eram relativamente pequenos e tinham formas aerodinâmicas, porque às vezes a trajetória ótima entre dois satélites os fazia roçar no topo da atmosfera. Alguns eram propriedade de uma companhia de transportes, outros eram particulares, como o Zanzara de Joanna. A comunidade dos satélites os conhecia pelo nome de Pony Express, o que dera origem a uma observação mordaz da Encyclopedia Universalis a respeito da persistência na imaginação do público de uma aventura comercial de um antigo governo.
O Zanzara não levava nenhuma carga para o Mundo Flutuante. Estava a caminho de um dos vizinhos mais próximos do Ukiyo em termos de órbita, uma estação de gravidade nula onde eram fabricados filamentos monocristalinos de diamante sintético. Satélites e saltadores estavam sujeitos a um conjunto complexo de regulamentos quanto aos custos de frete, reabas-tecimento e estadia que provavelmente ninguém conhecia por completo. Era uma vida para quem gostava do que fazia e não para quem estava trabalhando para ganhar dinheiro.
Pelo menos, era o que pensava Fenestri, que por razões obscuras preferia usar a versão em inglês do nome de batismo, Giovanna, e cuja pele estava tão vermelha quanto as botas que usava, já que recorrera durante toda a viagem às escotilhas de Lexan, que não filtravam totalmente os raios ultravioleta do sol, em vez de mantê-las opacas e recorrer a imagens geradas pelo computador, como era hábito entre os pilotos dos saltadores.
Nagaoka sabia que a moça, como todos os genoveses, sabia apreciar as coisas boas que o dinheiro era capaz de comprar, mas, ao que parecia, prezava ainda mais a liberdade.
Apertando algumas teclas, colocou o computador da estação em contato com o computador da nave. Assegurou-se de que tudo estava em ordem para a delicada operação de reabastecimento e voltou-se para o diretor.
─ Não era estritamente necessário ─ observou, com seu sotaque do norte da Itália ─ mas uma mulher tem o direito de se preocupar. Sou uma pessoa antiquada.
Ofereceu o braço a Nagaoka, que o tomou, depois de um momento de hesitação, acompanhando-a até o elevador.
─ Espantoso! – exclamou Joanna Fenestri.
Sentada de pernas cruzadas no tatame do kutatsu, segurava com reverência a xícara de cerâmica do tukonoma. Era uma peça irregular, aparentemente primitiva, de cor castanha, com um esmalte negro reluzente que lembrava nuvens e chuva.
─ Isto é Amagumo? ─ perguntou, levantando uma sobrancelha. ─ “Nuvem de Chuva” ─ disse Nagaoka, fazendo que sim com a cabeça. ─ Uma xícara de chá raku, feita pelo mestre Koetsu. Foi contemporâneo de Miyamoto Musashi. Conhece de nome? ─ Musashi, sim ─ disse Joanna, segurando a xícara pela base. ─ Que está fazendo aqui?
─ Era a marca registrada da Amagumo Corporation.
Quando o Mundo Flutuante começou a funcionar, a companhia a comprou da Mitsui, que a havia adquirido para sua coleção, e a mandou para cá para a cerimônia de inauguração.
─ Naturalmente, eu ainda não trabalhava aqui ─ prosseguiu, com um sorriso de modéstia. ─ Akaji- sama resolveu ficar com ela quando a Amagumo saiu do negócio, para puni-los por sua inconstância.
Nagaoka recebeu a xícara das mãos da moça, sondando a aspereza da superfície com as pontas dos dedos, sentindo a natureza que havia nela. Ela o fazia sentir-se mais forte. Talvez fosse por isso que tivera vontade de mostrá-la a Joanna.
─ Não é incomum, ter duas obras de arte tão famosas em uma estação espacial? Esta xícara e aquela sua pintura.
─ Xilogravura ─ corrigiu Nagaoka, desviando os olhos. ─ Ao contrário de Amagumo, é rara mas não é única. Todos nós do Ukiyo nos orgulhamos de possuir dois tesouros tão extraor-dinários.
A moça estava olhando para ele de uma forma que acentuava as rugas em volta dos olhos e nos cantos da boca. As rugas mostravam o quanto havia vivido com aquele rosto, e era exatamente por essa razão, explicara, que se recusava a removê-las.
Talvez fosse por isso que se considerava antiquada.
Nagaoka se deu conta de que estava se comportando como o prefeito de uma cidadezinha do interior, mostrando a nova usi-na de tratamento de esgotos a uma equipe de reportagem da NHK. Entretanto, não se sentiu muito envergonhado. Para ele, era sempre mais fácil lidar com as mulheres gaijin. Ainda o deixavam pouco à vontade, mas esperavam menos que as mulheres japonesas.
─ Ainda há mais ─ disse, colocando o Amagumo de volta no santuário. ─ Naturalmente. Já ouviu falar de ukiyo-e? Retratos do Mundo Flutuante?
Joanna fez que sim. Provavelmente tinha cabelos castanhos, mas estavam cortados tão rente que era impossível ter certeza.
─ Sei o que é ukiyo-e, mas nunca entendi o significado do nome. – “Mundo Flutuante” era originalmente uma expressão budista do período de Kamakura. Significava a qualidade fugaz da existência. No início do período Tokugawa, um novelista chamado Ryoi a usou para designar o estilo de vida da aristocracia Edo. Quando a guerra civil terminou, havia menos razões para praticar as chamadas “virtudes militares” (se é que alguma coisa militar pode ser chamada de virtude) e, naturalmente, os xoguns tinham todo o interesse em desencorajar os nobres de passatempos belicosos, que pudessem ameaçar a supremacia dos Tokugawa. Assim, a classe rica se dedicou a desfrutar as riquezas que o bakufu, o governo militar, conseguia arrancar dos agricultores.
“Ora, nós japoneses jamais deixamos de pensar no que os modernos chamam de realidade como O Mundo Flutuante. Temos paixão por lembranças, por omiyage: testemunhos de experiências, de momentos, porque cada momento é tão transitório e irrecuperável quanto uma ondulação de um rio. Para a nobreza do Mundo Flutuante, ukiyo-e representava momentos de suas próprias vidas.
“Ou às vezes representavam um meio de fuga, quando mostravam as realidades mais duras ─ camponeses trabalhando ou caminhando na neve ao longo do Circuito do Mar do Leste, pescadores enfrentando o mar ao largo da costa de Kanagawa.
Talvez seja curioso pensar em realismo como uma forma de escapismo. Entretanto, o que Hokusai chamava de manga, desenhar as coisas exatamente como são, oferecia aos cidadãos do Mundo Flutuante um mundo tão diferente quanto seria o nosso próprio Ukiyo. Lembranças de uma realidade deliciosamente estranha, tão exótica quanto um país distante. Algo parecido com a nostalgie de la boue de vocês, europeus. Mas acho que já falei demais.
Deve estar ficando entediada.
Joanna deu-lhe um tapinha no braço. Era raro o diretor ser tocado por duas pessoas diferentes em menos de vinte e quatro horas.
─ Claro que não. O conhecimento me fascina. É por isso que trabalho no espaço. Há tantas coisas novas para aprender... Nagaoka concordou com a cabeça, ainda com ar de quem pede desculpas. Tinham ficado amigos na primeira vez em que o trabalho de Joanna a levara ao Ukiyo após sua chegada ao satélite. Ainda não sabia ao certo o que a moça via nele. Sentia-se tentado a simplesmente acreditar no que dizia, mas a razão o fazia procurar uma explicação mais elaborada.
─ Assim, Amagumo representa uma ligação com o mundo lá embaixo, com o Japão. Uma lembrança de uma vida que talvez jamais voltemos a desfrutar. Nós todos temos um desses tesouros tokonoma: pergaminhos, pinturas, fotografias, até mesmo uma tanto ─ uma adaga ─ ou duas, embora nada tão grandioso quanto o Hokusai do qual sou o guardião orgulhoso ou a xícara de raku. Lembranças de casa, suficientemente pequenas para não exceder o limite de bagagem.
Ainda preocupado como próprio tom ─ imagine, falar com uma pessoa cosmopolita como Joanna Fenestri como se fosse uma universitária ─ Nagaoka se levantou e foi colocar a bandeja na fenda da parede, ignorando a mistura de indiferença e hostilidade nos haragei dos tripulantes que tinham sentido necessidade de encher os kotatsu no meio do turno.
Quando voltou, a moça estava bebericando chá e olhando para ele com a cabeça meio de lado. Os cabelos curtos, o rosto enrugado e o pequeno tamanho a faziam parecer um macaquinho muito inteligente. Nagaoka sentiu vergonha do pensamento.
─ Falando com os robôs? – perguntou Joanna.
O diretor piscou, surpreso.
─ Você falou quando estava devolvendo a bandeja. Imaginei que estava conversando com um desses robôs inteligentes que vocês japoneses parecem apreciar tanto.
─ Oh, não! Aquele era Toby.
Não pôde evitar um olhar rápido em volta. Ora, não iria cair no conceito dos subordinados por ser indiscreto com uma estrangeira... mas isso porque, na verdade, não podia cair mais do que já havia caído.
─ Toby?
Nagaoka fez que sim com a cabeça.
Você, mais que ninguém, deve saber como os robôs são dispendiosos no espaço: dispendiosos para transportar, dispendiosos para manter, embora talvez isso possa mudar se finalmente colocarem em funcionamento uma colônia de mineração na lua. Mesmo nós, japoneses, ware-ware nihonjin, não os usamos muito, a não ser para executar trabalhos muito difíceis ou perigosos para os humanos. No momento, é mais barato e eficiente utilizar um humano nos serviços de limpeza.
─ Será que entendi mal ou vocês realmente estão usando uma pessoa para fazer os trabalhos mais modestos? Em todas as estações que conheço, a tripulação inteira se reveza!
O diretor fixou os olhos no papel de arroz que cobria o piso, desejan¬do poder penetrá-lo e se juntar aos circuitos, tubos e tanques de algas que mantinham vivo o Ukiyo. Sentiu vergonha e ao mesmo tempo envergonhou-se de sentir vergonha: é a sina dos japoneses ocidentalizados, pensou.
─ Está familiarizada com o termo eta?
A moça sacudiu a cabeça.
– Significa sujeira. Costumava ser aplicado a uma casta tão abaixo das Quatro Profissões (nobre, agricultor, artesão e comerciante) que nem chegava a ser uma casta; eram os nossos Intocáveis. Executavam tarefas consideradas impuras, como esquartejar animais, curtir peles, recolher o lixo... o nome, de acordo com nosso costume de substituir o todo pela parte, significava na verdade recolhedores de lixo, embora naturalmente estivesse implícita a ideia de que eles próprios eram lixo.
“Eles ainda existem. Já não são conhecidos como eta...
ficariam muito ofendidos se alguém usasse o termo. Nós os chamamos de burakumin, os aldeões. Isso quando falamos deles, o que é raro.
O diretor deu uma risadinha, o que fez vários técnicos olharem para ele abertamente.
─ Agora mesmo, sinto-me como se estivesse sendo pornográfico diante de uma mulher bonita como você.
Joanna começou a rir.
─ Está sendo lisonjeiro ─ disse, mesmo sabendo que o diretor estava sendo sincero.
Porque Joanna era uma mulher muito bonita, embora mais pela vitalidade dos olhos castanhos do que pelo que havia sido vinte anos antes.
─ Mas por que o chama de “Toby”? Um nome que não tem nada de japonês?
– Acontece que pouco antes da Guerra... (referia-se à Terceira; ainda não estava acostumado com a idéia de uma Quarta Guerra Mundial a ponto de chamá-la simplesmente de Guerra) muitos burakumin começaram a adotar nomes estrangeiros como forma de expressar o desprezo que sentiam por uma cultura que não só os oprimia como fazia tudo para ignorá-los.
Serviu-se de chá de um bule aquecido.
─ Sei que deve estar chocada com a descoberta de que nós do Ukiyo somos tão medievais que encarregamos um burakumin dos serviços menos dignos. Não tome isso como desculpa, mas acho que deve saber que Akaji- sama foi muito criticado simplesmente por haver permitido que um burakumin viesse para bordo.
Bebeu um gole de chá.
─ Foi por atitudes assim que acabou assassinado pelos mercenários do MITI.
Joanna havia desviado os olhos e parecia estar piscando mais que de costume.
─ Não posso condená-los. Quem pode dizer como serão os costumes agora que o mundo lá embaixo está se desintegrando?
Ouvi dizer até que estão querendo que as mulheres voltem a ser donas de casa e fazedoras de bebês... graças a Deus que estou velha demais para isso!
Ficaram sentados em silêncio, sentindo o peso do que nenhum dos dois tinha coragem de dizer: que se o mundo estava realmente se desintegrando por causa da Quarta Guerra Mundial, provavelmente em pouco tempo não teria mais capacidade (ou mesmo interesse) para manter alguns dos seus filhos em órbita terrestre. O espaço ainda não era auto-suficiente. Apesar do que diziam os teóricos e os entusiastas, talvez nunca chegasse a ser auto-suficiente.
Joanna balançou a cabeça e levantou-se.
─ Bem, posso dizer que esta foi uma experiência muito instrutiva. Venho aqui há anos, mas nunca aprendi tanto a respeito deste lugar, e de seus ocupantes, como na última meia hora. Obrigada, Nagaoka- san. Espreguiçou-se.
─ Faltam algumas horas para o meu vôo para a Fábrica de Diamantes. Se puder me arranjar uma cama, gostaria de tirar uma soneca.
─ Você manda, Joanna ─ disse o diretor, sorrindo.
E pensou que há muito tempo não sorria.
Morishige Ryanosuke estava ocupado soldando um tirante defeituoso na armação do coletor solar, no local onde os sensores de MUSASHI tinham indicado que a liga de titânio se cristaliza-ra, quando a visão periférica atraiu-lhe a atenção. O ônibus espacial, repetiu para si mesmo, de forma quase automática. Sempre curioso e satisfeito com a interrupção da rotina, virou a cabeça para ver melhor. Os ônibus espaciais eram sempre uma bela visão no céu coalhado de estrelas.
Pintado de azul no casco branco, o número 4 pareceu saltar sobre ele como um animal.
Morishige havia nascido no interior, nas montanhas do norte de Honshu. Era um excelente técnico, com sólidos conhecimentos práticos de ciência, e estava no Ukiyo desde a época da construção do satélite. Entretanto, como acontecia com a maioria das pessoas, a exposição à ciência não eliminara as superstições adquiridas na infância.
Abriu a boca e exclamou:
– Shi!
Era a palavra japonesa para “quatro”.
Era a palavra japonesa para “morte”.
Do topo de sua pirâmide de programas utilitários e de Inteligência Artificial, MUSASHI podia controlar um conjunto de mais de cinco trilhões de operações por segundo. Antes que a última sílaba do grito de Morishige terminasse de ressoar em sua garganta, ela já havia realizado um número imenso dessas operações.
Depois que soube onde procurar, tudo se tomou tão óbvio quanto uma pegada lamacenta no meio de um manuscrito de Confúcio.
─ Morishige ─ gritou ─ proteja-se!
Era o único aviso que tinha tempo de dar antes de começar a agir.
No nanossegundo que durou sua ação, MUSASHI sofreu uma violenta sobrecarga no plano de dados. Uma máquina multiplex de IA estava sendo preparada com a finalidade específica de remover as defesas com as quais ela se mantinha... na verdade, faltavam apenas alguns segundos para que o ataque fosse bem-sucedido. Entretanto, as percepções obstinadas de entidades de proteína (e a atenção igualmente obstinada de uma entidade de silício) lhe haviam conferido uma estreita vantagem.
Instintivamente, MUSASHI se preparou para defender-se com um milhão de armas, um gigante de dados cheio de medo e ódio. Todo o seu ser se concentrou na tarefa de defender-se.
O contra-ataque que lançou contra a ameaça material não exigiu um lépton de sua atenção. Não havia nada que nem mesmo ela pudesse fazer para evitá-lo.
No seu primeiro espasmo de medo, Morishige havia largado a viga do painel solar. Enquanto flutuava no espaço, uma claridade súbita o fez virar a cabeça.
O motor do saltador brilhou como um sol. Enquanto o técnico olhava de boca aberta, a nave girou em três dimensões, ganhando velocidade, e rumou diretamente para o Mundo Flutuante. Morishige gritou de novo.
O nariz aerodinâmico do ônibus espacial estava retraído, expondo o módulo de acoplamento como um órgão genital a ponto de penetrar no convés do Ukiyo. A nave transorbital o atingiu um pouco à frente dos poderosos motores, fazendo explodir boa parte da carga de combustível que o Zanzara havia recebido na estação.
Morishige podia ser supersticioso, mas não era descuidado. Se o fosse, não teria sobrevivido sete anos no espaço. A corda de segurança não o deixou afastar-se mais que cinco metros.
Ele tirou as mãos enluvadas da frente do visor e olhou de novo. Foi então que viu uma coisa estranha. Entretanto, estava chocado demais para se lembrar de comentar a respeito com alguém.
Concentrado no exame das previsões mais recentes para as necessidades de suprimentos do Mundo Flutuante, Nagaoka teve um sobressalto quando ouviu a válvula giratória dos dutos de ventilação do seu quarto se fechar com um chunc surdo de plástico contra plástico.
─ Este compartimento acaba de ser selado ─ anunciou a unidade C ao quadrado no tom de eunuco lobotomizado dos programas de IA. ─ Mantido o nível normal de atividade física, o ocupante dispõe de aproximadamente dez minutos de ar antes que seja necessário recorrer ao suprimento de emergência. Por favor, mantenha-se calmo e não fume nem faça qualquer “coisa que provoque centelhas.
Logo depois, o comunicador disse:
─ Sensei.
Apesar da distorção, o diretor reconheceu instantaneamente a voz de MUSASHI. Deu-se conta de que vários alarmas estavam soando em outros compartimentos.
─ Preparar para colisão ─ disse a voz neutra da unidade c ao quadrado.
Podia ouvir a mesma advertência sendo repetida nos alto-falantes que ficavam ao longo do corredor, cada voz ligeiramente fora de fase com a anterior.
Preparar para colisão? Levantou-se de um salto e correu para a porta, que se abriu quando disse a senha. Nagaoka percebeu, horrorizado, que quase havia dito uma palavra de código diferente... uma palavra que odiava conhecer, uma palavra cujo uso seria uma traição pela qual jamais se perdoaria: o último presente envenenado de Yoshimitsu Shigeo, filho de Akaji- sama, que durante seu breve reinado havia sido o responsável pelo ba-nimento do diretor.
O corredor estava cheio de técnicos que haviam sido pegados fora dos alojamentos e oficinas... ou que conheciam as senhas apropriadas. Técnicos vestidos de vermelho cujo turno havia acabado de começar, outros vestidos de dourado do turno que havia terminado, outros ainda do terceiro turno, que deviam estar dormindo, usando os trajes prateados dos que não estavam de serviço, todos corriam para cá e para lá, trocando perguntas que ficavam sem resposta. Era um pânico discreto, bem no estilo japonês... pelo menos até então.
─ Voltem a seus postos! ─ gritou Nagaoka. ─ Não devem ser apanhados aqui se o casco for rompido!
Rostos se voltaram para ele, brancos como folhas virgens de papel de arroz aguardando a primeira pincelada. Alguns pareciam zangados. Por que não tenho voz de comando? ─ perguntou-se, agitando as mãos como se fossem flores na ponta de pedúnculos murchos.
Comportas de emergência se fecharam à frente e atrás do local onde Nagaoka se encontrava, aprisionando o diretor e uma dúzia de técnicos assustados em um microcosmo de vinte e cinco metros de comprimento.
O convés estremeceu sob seus pés.
Sentiu-se como se tivesse recebido um enema de água gelada. Não estavam em uma nave estelar como as dos seriados da TV, em que a tripulação da ponte de comando caía dos assentos praticamente em todos os episódios. A maioria dos ocupantes do Ukiyo nunca havia sentido nada parecido. Pelo menos, desde que haviam deixado o Japão e seus freqüentes terremotos.
Havia outra diferença entre o Mundo Flutuante e os filmes de televisão: em geral, quando alguma coisa dava errado no espaço, você simplesmente morria. Um homem perto de Nagaoka vomitou no tapete de borracha antiderrapante que cobria o piso do corredor, sujando os sapatos do diretor, que ainda estavam estacionados do lado de fora do shoin, presos magneticamente ao material condutor.
O corredor se esvaziou rapidamente. Fosse o que fosse que estava para acontecer, ninguém queria ser pego desprevenido.
─ A integridade da atmosfera foi rompida nos setores F, H e J ─ anunciaram os alto-falantes. ─ Por favor, permaneçam nos seus postos a menos que façam parte da equipe de controle de avarias.
MUSASHI, pensou Nagaoka, assustado. Voltou para o quarto, com a idéia irracional de que ali seria mais fácil conversar com a pupila.
─ MUSASHI! ─ gritou, na direção da tela do c ao quadrado.
A tela estava vazia. Ouviu uma salva de dados em alta velocidade, uma poeira de sons incongruentes.
Era como se os tendões que sustentavam seus joelhos estivessem se dissolvendo. Sentiu a pseudogravidade puxá-lo para baixo, sentiu o puxão transversal mais sutil da força de Coriolis.
MUSASHI, para quem ele era como um pai.
Correu de volta para o corredor, esquecendo-se de fechar a porta do shoin. Tinha que chegar o mais depressa possível à sala do computador, onde era executada uma boa parte do processamento, embora na verdade os processadores em paralelo que constituíam MUSASHI estivessem distribuídos por toda a estação, incorporados a sua própria estrutura: debaixo dos pisos, dentro das paredes, acima dos tetos, uma redundância multiplicada muitas vezes para reduzir a vulnerabilidade a acidentes ou sabotagem.
Sabotagem, pensou, enquanto corria em direção à pesada comporta que selava o corredor. Só podia ser isso. Talvez o ônibus espacial tivesse sido sabotado de alguma forma. No entanto, como a sabotagem poderia afetar MUSASHI daquela forma? Danos materiais capazes de deixá-la fora de ação seriam também suficientes para praticamente desintegrar a estação, deixando-a sem condições estruturais para suportar as forças geradas pela própria rotação. Tinha certeza de que sentiria imediatamente se alguma coisa desse tipo estivesse acontecendo.
Quando chegou à comporta, parou, ofegante. Não era fisicamente robusto e estava com muito medo. Preciso manter a calma. Preciso fazer alguma coisa. Oh, por que sou tão inútil?
Uma senha verbal classe um bastaria para abrir a comporta. Entretanto, não queria romper o isolamento e encontrar o vácuo do espaço à sua espera, como os tentáculos de um polvo gigante de um filme de terror. Estava no Setor C, os setores em que a integridade da atmosfera havia sido rompida, de acordo como a unidade de IA, ficavam na direção oposta à da sala do computador, que ficava no setor A, juntamente com o kotatsu e a extremidade do túnel que havia usado para chegar ao laboratório. Por outro lado, não sabia se podia confiar na unidade de IA. As rotinas de 5ª Geração pareciam estar funcionando normalmente, mas eram controladas por MUSASHI, e alguma coisa estranha e terrível estava acontecendo com ela. Será uma falha na programação central, que a está deixando irracional? Oh, pobre MUSASHI-sama!
Respirou fundo. Os construtores das estações espaciais pensavam em tudo, e os engenheiros que haviam projetado o Mundo Flutuante não eram exceção. Ao lado de cada comporta de emergência havia um painel que você podia abrir e testar diretamente se o setor do outro lado estava pressurizado ou não. O teste era puramente mecânico; continuaria a funcionar mesmo que todos os computadores de bordo estivessem desligados.
Nagaoka abriu o painel e apertou o botão de teste. Uma luz verde acendeu. Ótimo: havia ar do outro lado. Mesmo assim, tirou um capacete pressurizado de um nicho na parede e colocou-o na cabeça, embora sem ligar a saída de oxigênio.
O setor B estava deserto. Correu para a comporta seguinte, a respiração soando aos seus ouvidos como uma trovoada por causa do capacete. O teste revelou que o setor A também estava pressurizado.
Deu a ordem para abrir a comporta, temendo o que encontraria pela frente. Poderia ser uma invasão eletrônica? ─ pensou, durante a eternidade que os motores levaram para vencer a inércia da pesada comporta. Era uma idéia extremamente improvável. Se havia uma área em que podia quase considerar-se como um especialista, era a da informática. Afinal, participara da criação de TOKUGAWA, a primeira consciência artificial, embora sua função principal fosse apenas compor cenários para “humanizar” o programa.
Quase todas as sabotagens eram trabalhos “de dentro”.
Todas as redes de computadores dispunham de rotinas de IA capazes de perceber qualquer tentativa de interferência, e quanto mais valiosos os dados ou sistemas a serem protegidos, mais sofisticados os programas defensivos. Até mesmo os chamados programas de vírus, que podiam ser incorporados aos programas de um computador e modificá-los sutilmente, da mesma forma como um vírus de verdade invade uma célula e modifica a sua informação genética, podiam ser combatidos por programas análogos aos antivírus artificiais que haviam acabado com quase todas as doenças viróticas antes da guerra.
Naturalmente, nenhum sistema de defesa era perfeito. Entretanto, MUSASHI não era apenas a base de dados das contas do Banco Mitsubishi. Era uma coisa viva e o mundo dos dados era o seu ambiente natural. Pelo que conhecia da capacidade de MUSASHI, do irmão HIDETADA e do “pai”, TOKUGAWA, era inconcebível que um intruso humano pudesse afetá-la, não importava quantos asseclas de IA estivessem a seu serviço.
Naturalmente, não havia defesa contra alguém que estivesse munido dos códigos de acesso apropriados... mas acontece que, no caso de MU¬SASHI, não havia códigos de acesso apropriados. As duas gerações de cons¬ciência artificial tinham sido planejadas de modo a serem imunes a modificações externas, ainda que por parte dos próprios criadores. Existiam maneiras de desligar MUSASHI... deixe de eufemismos, pensou... de matá-la. Entretanto, era um processo complicado, de tudo ou nada.
Não podia tê-la deixado naquele estado.
Alguma coisa o trouxe de volta à realidade. A comporta afinal se havia aberto o suficiente para deixá-lo passar, o que fez sem perda de tempo.
Do outro lado, a confusão era geral. O kotatsu ficava perto da sala do computador e a tripulação se havia reunido ali, procurando na companhia dos outros uma defesa contra o que quer que fosse que estava para se abater sobre suas cabeças. A parte acadêmica do diretor, o observador que havia nele, constatou até que ponto permitira que o moral se deteriorasse; havia procedimentos a serem seguidos em caso de emergência, mas ninguém os estava respeitando.
Joanna Fenestri também estava lá, a fisionomia tensa como o punho de um afogado.
─ Minha nave! ─ disse para Nagaoka. ─ Não consigo comunicar-me com minha nave!
O diretor tentou desvencilhar-se da italiana. A multidão assustada correu para cercá-lo como a água liberada por uma comporta envolve uma pedra no meio do canal, gritando perguntas, fazendo acusações. O diretor não tinha o que responder.
─ Nagaoka- sensei!
Por um momento, não ouviu mais nada a não ser as seis sílabas, que pareciam suspensas no ar, cheias de significado, como uma linha de um hokku. A voz que saía dos alto-falantes estava distorcida a ponto de ser quase irreconhecível, mas era a voz dela.
─ MUSASHI- sama! ─ gritou, afastando automaticamente as mãos que tentavam agarrá-lo.
─ Nagaoka- sensei! ─ repetiu a voz, mais claramente. ─ Eu matei! O diretor ficou ali parado, ignorando o ruído que o cercava como se estivesse coberto por uma camada de Teflon, procurando digerir o que acabara de escutar. Tinha a impressão de haver sofrido alguma lesão no cérebro que o tornara incapaz de compreender a linguagem falada.
─ Que está acontecendo?
A voz grave se destacava no burburinho como o dono se destacava acima do ajuntamento de técnicos, usando um guarda-pó pouco apropriado, de estilo terreno, cujas abas batiam nas pernas compridas. Era o Dr. Thoma, o americano, com uma mecha de cabelos negros encimando a face rosada de gaijin e o grande nariz adunco de gaijin. Joanna agitava os punhos cerrados a milímetros do rosto de Nagaoka.
─ Que aconteceu com minha nave?
Parecia a ponto de agredi-lo.
─ Todos a seus postos de emergência! ─ berrou o diretor.
─ Imediatamente!
Ninguém lhe deu atenção.
O Dr. Thoma havia quase chegado à entrada do túnel pressurizado que levava ao laboratório de gravidade zero quando a comporta se abriu e alguém vestindo um traje espacial entrou tropeçando no corredor. O americano se encolheu.
─ Que diabo...?
O recém-chegado se voltou para ele e levantou o braço.
As paredes pareceram ceder diante de três violentas explosões, rápidas como um rufar de tambor. A frente do guarda-pó do Dr.
Thoma ficou manchada de vermelho. Ele recuou devagar, com os membros pendentes como os de um espantalho, deixando para trás uma fina neblina escarlate.
O silêncio era tão eloquente quanto um quarto tiro. Os técnicos tinham se afastado de Thoma e do intruso como gotas de mercúrio da ponta espetada de um dedo. Círculos perfeitos do sangue de Thoma decoravam o piso, as paredes e o teto, maculando a pureza retilínea em branco e preto do corredor.
Durante quatro batidas do coração de Nagaoka, o único som foi o do ar entrando e saindo da ruína que era o peito de Thoma. O intruso olhou para o diretor. Por trás do visor do capacete, Nagaoka entreviu um rosto moreno, barbado, de olhos esbugalhados, antes que seu olhar se fixasse no cano da arma que estava apontada para o seu estômago. Percebeu que estava sozinho. Até a morte seria melhor que aquilo.
O intruso fez meia volta. Os técnicos recuaram. Dois tinham sido atingidos; um estava deitado de lado, em posição fetal, e o outro, de joelhos, com o sangue escorrendo por entre os dedos e manchando a manga prateada do uniforme, olhando para o pistoleiro com olhos esgazeados.
Um gesto com a arma e o técnico de uniforme prateado
se levantou, com dificuldade. Outro gesto impaciente fez com que três técnicos se destacassem do grupo, como se um vaqueiro norte-americano estivesse separando cabeças de gado de um rebanho. O intruso fez os quatro se aproximarem de uma comporta fechada.
Ainda em regime de emergência, a porta estava firmemente trancada. O pistoleiro se voltou para Nagaoka, parecendo adivinhar que era ele que estava no comando.
Abra! ─ ordenou, em um inglês comum sotaque gutural.
─ Abra!
MUSASHI, abra essa comporta ─ disse Nagaoka.
A comporta se abriu. Nagaoka observou que o homem usava um brinco de ouro em uma das orelhas.
O pistoleiro sorriu.
─ Reféns ─ explicou.
Uma pistola de foguetes ─ disse Joanna Fenestri, em resposta a uma pergunta que Nagaoka não se lembrava de haver formulado. ─ Era isso que ele tinha. Acontece que provavelmente foi carregada com balas de chumbo, de modo a ter o mesmo efeito que, você sabe, uma escopeta.
A italiana adorava tecnologia; falar sobre tecnologia tinha sobre ela um efeito anestésico, embora no momento qualquer assunto talvez servisse para fazê-la esquecer temporariamente a perda que sofrera.
─ Espere um momento, por favor ─ disse Nagaoka, por sobre o ombro, enquanto manipulava a unidade c ao quadrado.
À sua volta, uma dúzia de técnicos se comprimiam no kotatsu, falando sem parar e ignorando sua presença. A enorme tela de televisão mostrava uma novela para ninguém.
─ Acabo de conseguir uma ligação... oh, Ginny, é bom ver você. ─ Deixe disso, Nagaoka ─ disse Ginny Saw, a matriarca da Fábrica de Diamantes. ─ Nunca é bom para vocês ver o rosto de uma fugu. Fazemos vocês perderem o apetite. Ouvi dizer que estão com problemas.
─ É verdade, Ginny ─ disse Nagaoka, agitado demais para explicar se estava concordando com a primeira ou a segunda afirmação. ─ Nós... ah, nós precisamos de um veiculo capaz de pousar na Terra. Nós...
─ A resposta é não.
A cabeça de Ginny era enorme, inchada pela falta de gravidade. Ela se virou momentaneamente, para dizer alguma coisa a alguém fora do alcance da câmara e o diretor pôde ver o eletro estimulador amarrado na sua nuca, por baixo de um coque apertado de cabelos pretos e foscos. Depois, olhou de novo para ele, que estremeceu. Flutuando ali, em um traje preto colante, com os braços cruzados diante do peito descomunal, emoldurada pelo cenário verde e preto que predominava na Fábrica, desafiando todas as convenções ergonômicas, Ginny parecia uma criatura de um dos antigos filmes de monstros da Toho, na época em que ainda usavam modelos e homens em trajes de borracha para representar Gojira e Rodan.
─ Que quer dizer com isso? ─ perguntou o diretor.
─ Mesmo que quiséssemos ajudá-los, está correndo por aí um boato de que um único saltador em um delta V de seis horas acaba de explodir do lado de fora da rodinha de vocês. Além disso, ouvimos alguma coisa a respeito de um sequestro.
Nagaoka sentiu uma ponta de raiva. Mesmo que não houvesse ninguém por perto para ver o clarão quando o Zanzara se chocara com o Número Quatro, não era provável que o acidente passasse despercebido... e qualquer um poderia verificar que o ônibus espacial deixara subitamente de se comunicar com a Rede, que levava a certas conclusões bastante óbvias. Entretanto, para Ginny saber o que estava se passando no interior da Ukiyo, precisava contar com um informante de dentro.
─ É... é verdade ─ admitiu. ─ Por que se recusa a nos ajudar?
─ Não temos trancas em nossas estações, Hiroshi. E esperamos que jamais isso seja necessário. Se você negocia com sequestradores, certamente haverá outros sequestros. Se aprendemos alguma coisa no Século da Traição, foi isso. Se quer fazer um acordo com esse bandido, terá que agir sozinho. Estou falando em nome de todos nós. Adeus.
Ginny desfez a ligação. Nagaoka consultou a tripulação e descobriu que os setores atingidos pelos fragmentos da explosão tinham sido novamente pressurizados, depois de reparos de emergência. O conserto definitivo levaria alguns dias, embora tivessem a bordo todos os materiais necessários.
Balançando a cabeça, com ar cansado, ajoelhou-se ao lado de Joanna para beber um pouco de chá, quase sem sentir o gosto.
─ Por que ele faria isso? ─ perguntou à moça. ─ Carregar a pistola com o que você disse.
Ora, as balas de chumbo não são suficientemente duras para furar o casco. Eles queriam tomar a estação, e não destruí-la. Caso contrário, usariam foguetes.
A conversa era tão lenta e calculada como se ambos estivessem andando de perna de pau. No momento em que a comporta se fechara atrás do intruso e dos quatro reféns, Joanna estava em cima do diretor, batendo-lhe no peito com os punhos cerrados e gritando que ele havia destruído sua nave. Afinal, Nagaoka a segurara pelos pulsos, surpreendendo-se tanto com a força da italiana quanto com o fato de que conseguira dominá-la.
Nagaoka tentara explicar que não tinha a menor ideia do que a moça estava falando. Joanna se limitara a chorar e sacudir a cabeça, como um animal preso em uma armadilha, enquanto os técnicos observavam a cena, ainda chocados com a violência que pouco antes haviam testemunhado.
MUSASHI acorrera em socorro do diretor, falando através dos alto falantes instalados nas paredes e explicando que destruíra o Zanzara para salvar a estação. Joanna sabia da existência de MUSASHI, mas parecia considerá-la como apenas uma curiosidade, uma espécie de brincadeira de salão científica: algo parecido com Hans, o Cavalo Que Sabia Contar. Ouvir uma voz que considerava tão viva como a voz que lhe avisava quando as torradas estavam no ponto assumir a responsabilidade pela destruição de sua nave e ganha-pão (e de quem sabia quantas vidas humanas) deixara Joanna em estado de choque.
Nagaoka a conduzira para o seu kotatsu e lhe oferecera um pouco de chá. Depois, voltara ao corredor, onde o Dr. Shimada e seu assistente estavam cuidando dos feridos.
O Dr. Thoma morreu enquanto Nagaoka observava, com uma fascinação mórbida, por cima do ombro do médico. O técnico ferido que o pistoleiro deixara para trás estava com duas balas de chumbo no abdome. O Dr. Shimada não sabia se os ferimentos eram sérios. Nenhum dos dois projéteis parecia haver atingido um órgão vital, mas nada poderia dizer sem um exame mais minucioso. O técnico foi colocado em um carrinho para transportar equipamentos e levado para a enfermaria.
Enquanto isso, Nagaoka estivera tentando conversar com o intruso, primeiro através da comporta fechada que dava acesso ao túnel e depois com o auxílio do sistema c ao quadrado, depois de explicar ao pistoleiro que podia usar o rádio do capacete.
As negociações chegaram rapidamente a um impasse. O intruso, que se identificara como sendo de nacionalidade portuguesa, queria um ônibus espacial para levá-lo de volta à Terra, mas Nagaoka não tinha como atendê¬-lo, mesmo que quisesse.
As forças de segurança da YTC, juntamente com a polícia de Fukuoka, haviam retomado a maior parte da Base de Lançamento e estavam eliminando os últimos bolsões de resistência, mas era óbvio que nenhum foguete partiria dali durante muito tempo.
E também levaria tempo para programar um lançamento de uma das outras bases que haviam sobrevivido à Quarta Guerra Mundial: La Paz, na Bolívia, por exemplo, ou Mistral, na França.
Como o resto da comunidade orbital se recusava a ajudá-los (MUSASHI bem que tentara se comunicar com as estações próximas, mas Ginny Saw estava falando a verdade), não havia nada que Nagaoka pudesse fazer a não ser recorrer ao velho costume japonês de não fazer nada e esperar pelo melhor.
Sacudiu a cabeça.
─ Quem poderia ter feito isso?
─ HIDETADA – respondeu MUSASHI.
Nagaoka olhou de soslaio para Joanna. A italiana estava de cabeça baixa; o diretor viu uma lágrima cair do rosto da moça e fazer ondas circulares na superfície do chá.
─ Que quer dizer com isso? ─ perguntou, em japonês.
─ Meu irmão ─ disse MUSASHI. ─ Ele exigiu que me submetesse a sua autoridade. Recusei-me. Por isso, tentou assumir o controle do substrato físico que minha consciência ocupa, esperando subjugar-me desta forma.
Nagaoka franziu a testa, tentando compreender. Entretanto, a ideia de uma entidade criada pelo homem assumir uma atitude tão extrema por iniciativa própria, a idéia de uma luta pelo poder entre duas dessas entidades, era algo que não estava preparado para assimilar.
Afinal, por que estou surpreso? ─ pensou, bebendo um gole do chá, que já estava quase frio. ─ Criamos TOKUGAWA para ter vontade própria. É de admirar que seus filhos sejam voluntariosos? Mesmo assim, não era fácil acreditar.
─ Como sabe que foi o seu irmão, MUSASHI- sama?
─ Ele me atacou no instante em que percebi o que estava acontecendo. Felizmente, já havia lançado a nave de Joanna contra o ônibus espacial. HIDETADA tinha tentado dominar-me antes, no plano de dados, sem sucesso. Desta vez, preparara melhor sua investida.
Fez uma pausa.
─ No momento ainda está me pressionando, mas conseguirei resistir. Há pouco tempo, não estava tão certa.
O alívio tomou conta do diretor como se fosse a água subindo pelas raízes do bordo bonsai de um dos técnicos do turno vermelho. O comportamento de MUSASHI chegara a assustá-lo, como se a filha que jamais tivera de repente começasse a cuspir sangue. Tivera muito poucos amores na vida. Falta de tempo...
sua forma pessoal de dizer que não podia imaginar por que razão uma mulher se interessaria por ele.
Joanna havia levantado a cabeça e estava olhando para ele, com os olhos brilhando.
─ Como foi que ela descobriu?
Nagaoka não tinha como saber o quanto da conversa a italiana havia compreendido. Aparentemente, não falava japonês. Entretanto, o diretor sabia muito bem que as outras raças tinham seus próprios aimai, por mais que seu povo gostasse de acreditar que truques desse tipo eram de sua propriedade ex-clusiva.
Depois de esperar educadamente que o humano respondesse à pergunta de Joanna, e percebendo que ele não se dispunha a fazê-lo, MUSASHI disse:
─ Percebi o que estava acontecendo no último momento.
Foi um técnico que estava trabalhando nos painéis solares que me alertou.
Joanna olhou para a unidade c ao quadrado, com uma expressão interrogativa.
─ A base de Fukuoka sempre mantém dois ônibus espaciais de reserva, abastecidos e prontos para serem lançados ─ explicou MUSASHI.
─ Isso não é comum ─ disse Joanna.
–─ Verdade, Fenestri-san. Acontece que, por algum descuido, quando os primeiros ônibus espaciais foram entregues, um deles tinha um enorme número quatro em algarismos romanos pintado no casco.
Joanna deu de ombros.
─E daí?
Para o consórcio suíço-alemão que fabricou os ônibus espaciais, pintar números nas quatro primeiras naves que saíram da linha de montagem parecia um bônus inofensivo, um gesto barato de boa vontade.
Infelizmente, quatro, shi, também significa morte para os japoneses. Até hoje, os japoneses têm medo do número quatro.
Com vergonha de admitir que a população que gostava de se apresentar como a mais adiantada da face da terra pudesse ser tão supersticiosa, a direção da base de Fukuoka nem pensou em mandar a nave de volta para Genebra. Ao mesmo tempo, eles acharam que não adiantava pintar alguma coisa por cima do número quatro, já que todos sabiam do caso. Não; melhor deixar a nave como reserva.
A sorte estava do lado da direção; cada vez que surgia a necessidade havia outra nave disponível, até que afinal a frota foi ampliada e tornou-se possível retirar um segundo veículo do serviço regular. Não havia nada demais nisso, apressou-se a explicar a administração de Fukuoka; apenas a preocupação normal dos japoneses com a segurança. Com dois ônibus espaciais de reserva, jamais seriam obrigados a lançar uma nave que não estivesse em perfeitas condições, mesmo que houvesse uma sobrecarga no cronograma de lançamentos.
Assim, o ônibus número quatro nunca havia deixado a Terra. ...Até aquele dia.
─ Do jeito que eu penso que as coisas aconteceram, os invasores não podiam lançar o ônibus titular, porque levariam tempo demais para descarregá-lo... tempo suficiente para que alguém descobrisse que haviam tomado a base de lançamento.
Algum técnico da base pensou depressa e convenceu os invasores a utilizarem o Número Quatro em lugar do ônibus de reserva normal. Entretanto, não podemos ter certeza até que haja uma investigação completa na base de Fukuoka.
─ Você não pode cuidar disso? ─ perguntou Joanna, levantando uma sobrancelha.
O choque de se ver diante das reais potencialidades de MUSASHI a havia feito passar de um extremo a outro; agora, parecia pensar que não havia nada que o programa não pudesse fazer. – Não tenho corpo para me deslocar até lá e examinar as provas, Joanna-san. Nem sei o que devo perguntar aos funcionários da base. Você sabe que as pessoas que se dedicam aos estudos tecnológicos às vezes se descuidam da parte social. Pode pensar em mim como um computador do tipo “rato de biblioteca”. Joanna Fenestri ficou olhando para a unidade c ao quadrado, sem saber se devia ou não aceitar literalmente a explicação de MUSASHI. Na¬gaoka estava abrindo a boca para explicar-lhe, com muito jeito, que aquilo não passava de uma brincadeira inocente do computador, quando o aposento subitamente se encheu de técnicos furiosos.
O coração de Nagaoka deu um pulo quando reconheceu Katsuda no meio do grupo, com Tomoyama logo atrás.
─ Que está acontecendo? ─ perguntou.
─ Fomos invadidos ─ disse Katsuda. ─ Nós também queremos saber “o que está acontecendo”.
Os outros técnicos emitiram murmúrios de aprovação.
─ E a resposta está aqui, para quem quiser ver: o nosso diretor, aqui sentado, alheio a tudo, bebendo chá com uma perua tanin.
Os técnicos se aproximaram de Nagaoka, gritando impropérios. Joanna ficou onde estava, surpresa. Como a maioria dos ocidentais, acostumara-se à idéia de que os japoneses eram sempre comedidos, sempre educados, sempre submissos à autoridade.
O que era verdade... quase sempre. Para eles, a autoridade era muito importante. E nesse caso, o que estava em jogo era precisamente a autoridade: a sua contra a de Katsuda.
Porque apesar de toda aquela conversa de lealdade, dever, kokutai e espírito de equipe, os japoneses acreditavam muito em resultados práticos. A verdade era que Nagaoka não havia feito um grande trabalho como administrador da estação.
O que não lhe deixava muito para responder ao técnico-chefe. Thoma, o americano, foi assassinado pelos invasores, ─ teve vontade de gritar. Isso não o deixa satisfeito? Mas jamais teria coragem de dizer uma coisa dessas.
─ Estamos dando tempo ao tempo ─ disse, procurando manter-se calmo e amaldiçoando a própria gagueira. ─ Em muitas circunstâncias, é a melhor estratégia...
─ Bakayaro! ─ exclamou Tomoyama, destacando-se do grupo para enfrentar o diretor.
Os ossos do seu rosto se projetavam com um relevo agres-sivo, como se a pele fosse um papel machê aplicado úmido, que se encolhesse ao secar. Os olhos se haviam retraído para o fundo das órbitas... um fenômeno que Nagaoka já havia observado na América entre os ameríndios da região de Atabasca, lembrou-se o teórico frio que havia no diretor, mais uma refutação da idéia popular de que a raça japonesa havia evoluído independente-mente do resto da humanidade.
Entretanto, o principal assecla do técnico-chefe não estava disposto a permitir que se refugiasse na antropologia.
─ Maldito! ─ exclamou. ─ Você foi o culpado de tudo! Você nos desgraçou!
Levantou a mão direita. Fez uma pausa e Nagaoka olhou para a lâmina curta e perversa de uma tanto, uma adaga antiga do tokonoma pessoal de Tomoyama, a luz fluorescente refletindo-se na arma e fazendo-a parecer um maçarico. Os outros técnicos recuaram, deixando apenas os dois em seu palco pessoal de kabuki. Com o canto dos olhos, Nagaoka podia ver Katsuda, um sorriso triunfante estampado na cara de buldogue.
A lâmina desceu.
Nagaoka permaneceu onde estava, imóvel.
Uma hesitação no último momento desviou a lâmina do olho direito de Nagaoka, fazendo-a abrir um sulco na face do diretor, do malar até a ponta do queixo, passando pela linha longa e triste que partia do canto da boca. Joanna Fenestri gritou.
Nagaoka continuou parado, os olhos calmos, o sangue escorrendo do rosto como um pendão vermelho. Os olhos esgazeados de Tomoyama encontraram os seus.
─ Agradeço-lhe por sua pureza, Tomoyama-san ─ disse Nagaoka.
A adaga caiu dos dedos do técnico. A lâmina ─ imaculada, pois o sangue não podia molhar o metal de que era feita ─ perfurou o tatame e ficou espetada no plástico que forrava o piso.
Tomoyama caiu de joelhos. Devagar, como se estivesse sendo forçado, curvou-se para a frente até sua testa tocar o tatame diante dos pés de Nagaoka. Quando levantou a cabeça, estava suja com o sangue do diretor.
Um por um, os outros técnicos se ajoelharam e se prostraram, até que apenas Nagaoka e Katsuda permaneciam de pé.
Nagaoka fez uma mesura para o técnico-chefe e se retirou do kotatsu.
Nagaoka estava do lado de fora do laboratório para onde o intruso havia levado os cativos. A porta estava trancada.
─ Hesseno ─ disse em inglês, usando o termo universal para mercenários.
Tinha quase certeza de que o pistoleiro era um deles; desde antes da Terceira Guerra Mundial, Portugal havia se tornado um dos principais exportadores de soldados.
─ Que é que você quer?
Ouviu murmúrios incompreensíveis do lado de dentro, amortecidos pelo capacete e pela porta fechada, mas as palavras chegavam a ele claramente através da unidade c ao quadrado do corredor.
─ O ônibus espacial está pronto para partir?
─ Não há nenhum ônibus espacial.
─ É melhor que haja ─ disse a voz, aumentando de volume
─ ou vou começar a liquidar esses macacos.
─ Vim propor uma troca ─ disse Nagaoka.
─ Se não arranjar um meio de me tirar desta roda, não vai haver troca nenhuma.
─ Tenho algo melhor do que esses reféns para oferecer a você. ─ O quê?
─ Eu mesmo.
A porta do escritório de Nagaoka se fechou. Nagaoka ajoelhou-se diante do tokonoma e olhou para o pistoleiro português.
Os olhos do intruso percorreram o aposento.
─ Então este é o seu escritório? Não parece grande coisa.
─ É suficiente para minhas necessidades.
─ Não vejo nenhuma mobília. Onde é que você dorme?
─ Tenho um futon guardado naquele armário. É um tipo de colchão que a gente enrola quando não está usando.
─ Onde é que você se senta?
Nagaoka apontou para o tatame. O mercenário sacudiu a cabeça, com um muxoxo de desagrado.
─ Posso lhe oferecer um pouco de chá?
─ Ora, ora! Essa é boa! O intruso tinha uma risada selvagem, descontrolada, como um homem assustado correndo morro abaixo. O cano da arma jamais se desviava de Nagaoka. É espantoso como a gente pode se acalmar quando está diante da morte, pensou o diretor.
─ Acha que vou cair num golpe desses?
─ Posso beber primeiro, se isso o fará sentir-se mais tranqüilo. O pistoleiro mostrou o visor do capacete com a mão enluvada.
Nagaoka encheu de água um bule de cerâmica, colocou-o no pequeno forno de microondas e ficou de cócoras, esperando a água ferver. O pistoleiro começou a andar de um lado para o outro. A ausência de cadeiras parecia deixá-lo nervoso.
O alarma do forno tocou. Nagaoka abriu um armário, tirou outro bule, apanhou uma pitada de chá em uma caixa de madeira esmaltada e jogou-a dentro do bule. Depois, encheu-o coma água quente do outro bule e colocou-o de lado.
O pistoleiro estava encostado na porta, um pouco mais calmo. Com aquele traje espacial branco e volumoso, parecia o homem dos anúncios da Michelin. Nagaoka surpreendeu-se com o fato de alguém tão perigoso poder parecer tão absurdo... talvez fosse a sua imaginação; estava excitado, ansioso, e sabia disso.
─ Nagaoka- sensei ─ disse MUSASHI, da parede. ─ Que é que está fazendo?
─ Algo de positivo, pela primeira vez na minha vida.
O pistoleiro olhou para ele. Felizmente, MUSASHI havia falado em japonês.
─ Quem era? – perguntou o intruso.
─ Minha... minha secretária.
─ Tem uma bonita voz. Você, você... – fez um gesto significativo com o cano da arma – anda comendo ela?
─ Não.
─ Sensei, por favor, você está me deixando com medo.
O diretor sacudiu a cabeça. Ter MUSASHI por perto era um conforto, mas no momento sentia vontade de desligá-la. Embora nem ela fosse capaz de fazê-lo voltar atrás.
─ Não se preocupe, menina. Sei o que estou fazendo. É a única saída.
O pistoleiro estava ficando nervoso de novo.
─ Chega dessa bosta. Não gosto de ver você falando coisas que não entendo.
─ Desculpe ─ disse Nagaoka, servindo-se de chá. ─ Vou ficar calado.
Podia sentir a presença de MUSASHI, ansiosa para conversar com ele, ansiosa para intervir de alguma forma. Entretanto, o medo de dizer ou fazer alguma coisa que enfurecesse o intruso a deixara paralisada.
Esqueça-se dela.
Nagaoka bebeu um gole de chá e ofereceu a xícara ao pistoleiro.
─ Não quer um pouco? Eu bebi desta xícara, você viu.
Desta vez, o pistoleiro hesitou. Lambeu os lábios; a tensão o deixara com a boca seca. Nagaoka estava no espaço tempo suficiente para saber que provavelmente havia um reservatório de água no interior do traje espacial. Quem sabe, porém, se o intruso havia se esquecido de abastecê-lo? Quem poderia dizer que tipo de disciplina teriam os capangas de HIDETADA?
Nagaoka também sabia que aqueles trajes espaciais podiam ser extremamente desconfortáveis quando a gravidade era diferente de zero. Além disso, o intruso devia estar estranhando a velocidade de rotação do Ukiyo, relativamente alta, sacudindo o fluido em seus canais semicirculares como o agitador de uma máquina de lavar roupa, enchendo-lhe as entranhas com uma estática de náusea. Com os sentidos aguçados pela ocasião, Nagaoka podia vê-lo caminhar inconscientemente ao longo de uma das paredes, deslocando-se no sentido contrário ao do movimento de rotação, como era a tendência de todos os objetos a bordo.
Bebeu mais um gole de chá e deixou a natureza agir sobre o homem. Ele próprio estava tão tranqüilo quanto a água no fundo de um poço.
O pistoleiro suspirou. Baixou o cano da arma, mas não o suficiente para Nagaoka pensar em tentar alguma coisa, mesmo que fosse um homem de ação.
─ Tenho duas filhas ─ disse o homem. ─ Devem ter...
quantos anos? Nove e dez, acho.
Ele riu.
─ Estive na América do Sul, lutando pelo Uruguai, ao lado de pessoas que falam uma língua parecida com a minha. É um mundo engraçado. Antes da guerra, eles me deixaram viajar para casa duas vezes. Da terceira vez, tinham esterilizado minha mulher.
─ Faz, humm..., cinco anos que não volto para casa. Os pan-Europeus tomaram a província onde mora minha família.
Se me pegassem, eles me recondicionariam. Mas bem que eu gostaria de rever minhas filhas.
Pela primeira vez, Nagaoka hesitou. Pare, teve vontade de gritar, não me conte nada sobre sua família, não se torne humano aos meus olhos. Tinha que levar essa coisa até o fim; agora que havia encontrado o giri, não podia deixar que o ninjo interferisse.
Não suportaria outra decepção.
Faz uns seis ou sete meses, minha mulher me mandou um holograma das crianças. Está aqui dentro do traje, junto do meu coração, en¬tende? Assim posso quase senti-las. Sabe que gostaria de poder tirar esta maldita coisa? Estou morrendo de vontade de fumar.
─ Pode tirar o capacete ─ sugeriu Nagaoka. O homem olhou para ele, desconfiado.
─ Acha que usariam gás venenoso? ─ perguntou Nagaoka.
─ Não sabe que sou o diretor deste satélite?
─ Tem razão. Conheço vocês, japoneses. Eles jamais fariam uma coisa dessas.
Isso mostra que você não sabe nada, pensou Nagaoka, resistindo ao impulso de levar a mão ao longo corte que a adaga de Tomoyama havia feito no seu rosto. O Dr. Shimada tinha limpado a ferida, aplicado um anestésico e coberto o corte com uma camada de plástico que permitia a passagem do ar, mas não das bactérias.
O intruso começou a mexer nos grampos que prendiam o capacete. Era difícil retirá-lo com uma mão só. Mantinha a arma apontada e sua atitude deixava claro que se Nagaoka fizesse qualquer movimento suspeito não hesitaria em atirar.
Para acalmá-lo, Nagaoka desviou os olhos, concentrou sua atenção no Sob as Ondas na Carta de Kanagawa. Existe tanta beleza no mundo, mesmo para alguém como eu! Pena que só notei isso tarde demais.
─ Está bem ─ disse o intruso, com sua voz natural, tão direta quanto um soco no rosto. ─ Já tirei aquela coisa. Dê-me um pouco de chá.
Nagaoka olhou para ele, empurrou a xícara cheia pela metade na sua direção e encheu outra xícara. O pistoleiro se aproximou, sentou-se com dificuldade, ainda sentindo os efeitos da rotação no ouvido interno, Pegou a xícara e bebeu.
Nagaoka levantou a outra xícara, bebeu um gole, dois, e depois engoliu todo o conteúdo de uma vez só.
─ Sayonara, MUSASHI- sama! – exclamou.
– Nagaoka- sensei! – gritou MUSASHI, sem poder impedir o mestre de executar o seu plano.
O diretor falou várias sílabas, uma palavra sem sentido.
De repente, MUSASHI teve uma sensação de amputação. Podia perceber o que estava acontecendo dentro do shoin com grande clareza, mas nem ela nem qualquer dos sistemas que controlava podia afetar os sistemas básicos do aposento: nem a energia elétrica, nem as comunicações, nem a ventilação. Era como em um livro que lera a respeito dos zumbis (assuntos como esse a fascinavam), no qual as vítimas ficavam imobilizadas por toxinas fugu, aparentemente mortas mas perfeitamente conscientes, enquanto os parentes as velavam, enquanto as sepultavam, enquanto jogavam terra sobre o caixão.
Controle manual. Nagaoka, por quê?
Ela sabia que o diretor havia dado o comando para abrir o aposento para o espaço.
– Não!
O grito de MUSASHI se misturou com o ruído do ar que escapava. A fusuma pintada que escondia a comporta foi sugada imediatamente e desapareceu na escuridão.
Desorientado pela tensão e pela náusea, o pistoleiro hesitou por um instante. O capacete saiu rolando no chão para fora do seu alcance. O ar estava escapando dos seus pulmões, levando com ele filamentos de muco e saliva. Tentou apontar a arma para Nagaoka, que se agarrava à armação do tokonoma com um reflexo que mesmo as pessoas que desistiram de viver não deixam de exibir. O deslocamento de ar, porém, o fez perder o equilíbrio e cair de bruços, enquanto o tiro arrancava um pedaço de plástico da parede.
Nagaoka sentiu alguma coisa atingi-lo por trás, enrolar-se em sua cabeça, tocá-lo de leve no rosto, como a carícia de uma amante. Piscou os olhos, sacudiu a cabeça. Sob as Ondas na Costa de Kanagawa afastou-se devagar, adejando por um momento como uma borboleta antes de desaparecer no espaço.
A corrente de ar estava diminuindo.
─ Adeus ─ murmurou, pensando na pintura. ─ Pena que você tivesse que abandonar o Mundo Flutuante junto comigo.
O rosto do pistoleiro estava começando a perder a cor à medida que os capilares se rompiam por baixo da pele. Ele levantou a arma. Apontou-a para Nagaoka. O dedo enluvado se contraiu.
Nada aconteceu. A munição havia acabado. O mercenário largou a pistola e escondeu o rosto entre as mãos.
Nagaoka deixou escapar o ar que restava em seus pulmões, fechou os olhos e aguardou ansiosamente a inconsciência.
Nagaoka Hiroshi abriu os olhos.
– Nagaoka- sensei? ─ disse a voz de MUSASHI. ─ Está acordado? O diretor fechou os olhos por um momento, sentindo a leve tontura que às vezes o acometia logo depois de acordar a bordo da estação espacial.
─ Parece que ainda estou vivo.
Suspirou. Sentia-se como se tivesse levado uma surra.
Cada vez que respirava, o ar parecia queimar-lhe os pulmões.
─ Está, sim, Nagaoka- sensei. Consegui neutralizar o comando manual e repressurizar o alojamento antes que seu cérebro sofresse danos irreversíveis. O Dr. Shimada lhe aplicou uma dose de ibuprofeno para suprimir a liberação de tromboxano e facilitar a recuperação da leve isquemia que sofreu. Ele também injetou um bloqueador de endorfinas, já que as endorfinas podem retardar a recuperação. É por isso que está se sentindo meio tonto.
Soava como uma aluna repetindo, orgulhosa, a lição que havia acabado de aprender na aula.
─ Que foi feito do outro? O português?
─ Ele não foi tratado.
Em outras circunstâncias, a resposta teria deixado Nagaoka indignado. Entretanto, ele se limitou a perguntar.
─ Por que não aceitou meu sacrifício? Estava preparado para deixar este mundo.
MUSASHI não respondeu. Nagaoka tentou avaliar o próprio estado. Sentia os olhos doerem. A pele ardia, como se tivesse tomado sol demais. A respiração era difícil. O corte no rosto latejava. Se a falta de oxigênio havia produzido danos permanentes no seu cérebro, não dava para perceber. Se houvesse algum dano, eu perceberia? Não estava muito interessado na resposta.
Era como se houvesse se cansado de tanto se questionar.
─ Sensei, perdoe-me, por favor.
Olhou interrogativamente para a unidade c ao quadrado, dando-se conta de repente de que estava no seu shoin.
─ Você é meu único amigo. Você é minha família. Os outros me consideram como uma experiência. Uma coisa. Oh, alguma coisa mudou depois do que aconteceu. Alguns me tratam como uma deusa... ou como um demônio. Entretanto, você é o único para quem eu sou uma pessoa. Não quero perdê-lo. Mas se quiser, posso fornecer-lhe os meios...
Ela não terminou a frase.
Nagaoka fechou os olhos.
─ Um dia você vai me perder, menina. É assim que é a vida. Tudo passa, menos você, seu irmão e o velho Inja- san. Mas se eu desistisse agora, depois de deixar passar a ocasião de morrer como herói, seria um desperdício, não acha?
Suspirou.
─ Vou sentir falta de Sob as Ondas na Costa de Kanagawa. ─ Sinto muito, sensei. Quando foi sugada para fora, a pintura adquiriu uma órbita desconhecida. Até mesmo para mim seria quase impossível calcular sua trajetória. Além disso, já deve estar tão longe que...
Nagaoka sacudiu a cabeça.
─ Deixe para lá.
Imaginou se a trajetória da pintura poderia levá-la de volta para a atmosfera. Imaginou-a caindo como uma folha em chamas, um brilho fugaz, desaparecendo sem deixar vestígios. Não tinha a menor idéia se isso era possível, seus conhecimentos de física não chegavam a tanto. Mas seria tão apropriado!
─ Posso arranjar outra pintura, sensei.
─ Não, MUSASHI-san, obrigado. Deixe para lá. É apenas uma pintura do Mundo Flutuante.
Notas do Editor:
O Mundo Flutuante - Victor Milán Data da primeira publicação 1989
É um conto extraído da Revista. Isaac Asimov Ficção Científica. Número 01. Editora Record. Ano 1990. Foi feito a diagramação e correção. Pelo autor do blog. Sem atributos comerciais.
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